quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

O REFLEXO DO GOVERNO BOLSONARO >> Denúncias de ataques a religiões de matriz africana sobem 47% no país

 Presidente do Movimento Umbanda do Amanhã, Marco Antônio Pinho Xavier (no centro) já registrou mais de 30 boletins de ocorrência relacionados a intolerância religiosa Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo
 Presidente do Movimento Umbanda do Amanhã, Marco Antônio Pinho Xavier (no centro) já registrou mais de 30 boletins de ocorrência relacionados a intolerância religiosa: “Recebo muito xingamento, ameaça de morte” Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

Armados, seis homens acabam com uma cerimônia de saudação a Oxalá em Camaçari (BA). Enquanto roubam as vítimas, agridem verbalmente os presentes, adeptos do candomblé, associando a religião a demônios. O babalorixá Rychelmy Esutobi, líder do local, é espancado.

O caso, ocorrido no último dia 13, é um exemplo da violência sofrida por líderes religiosos ligados a matrizes africanas no Brasil, como o candomblé e a umbanda.

— É um momento de muita dor e reflexão. A gente ver o nosso sagrado ser profanado e ser agredido nos dói muito, mas também nos fortalece — afirmou o babalorixá Rychelmy em vídeo postado em uma rede social.

Nos últimos anos, os ataques contra os seguidores dessas religiões aumentaram. Segundo dados do Disque 100, canal do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que concentra denúncias de discriminação e violação de direitos, foram feitas 213 notificações de intolerância religiosa a matrizes africanas, de janeiro a novembro de 2018. Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação.

O número é 47% maior do que o registrado em todo o ano de 2017, quando foram recebidas 145 denúncias. Se em 2014 elas correspondiam a 15% do total de denúncias, hoje representam 59% do número total de reclamações.



DENÚNCIAS DE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO BRASIL


Ataques a religiões de matriz africana são os mais numerosos


Total de denúncias de intolerância religiosa


Matriz africana








2018
até novembro


Fonte: Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos

Na contramão do total

O movimento ocorre num momento em que o país vê o número total de denúncias de intolerância religiosa diminuir. Os dados ainda não estão fechados, mas tudo indica que 2018 terá sido o ano com menos queixas desse crime desde 2014 — de janeiro a novembro, foram 360. Há quatro anos, eram 556.
 
Sônia Giacomini, professora da PUC-Rio e uma das autoras da pesquisa que resultou no livro “Presença do axé: mapeando terreiros no Rio de Janeiro”, cita um “clima de muita disputa, muita agressão e muito medo”, que se acirrou a partir da última campanha eleitoral.

— O aumento da notificação está ligado ao aumento do fenômeno e, na conjuntura atual, não é difícil imaginar os motivos. A última campanha eleitoral teve uma expressão muito evidente das formas intolerantes, elas tenderam a se multiplicar.

Entre os tipos de ataque mais comuns, Giacomini lista as agressões verbais e físicas, as pichações nas casas de culto e mesmo uma guerra sonora, em que vizinhos usam som em alto volume para impedir que os religiosos escutem as cerimônias.
 
Presidente do Movimento Umbanda do Amanhã (Muda) e liderança à frente da Tenda Espírita Caboclo Flexeiro, em Santíssimo, no Rio, Marco Antônio Pinho Xavier já registrou mais de 30 boletins de ocorrência relacionados a intolerância que, segundo ele, nunca viraram processos.

— Eu recebo muito xingamento, ameaça de morte, as pessoas entram com facão tentando me matar, xingam as crianças de filho de demônio. Uma vez prenderam um cara em flagrante que ofendeu crianças, foi solto um mês depois. Hoje ele está aí me insultando novamente.
 
Para Xavier, o Estado “não garante o direito do cidadão com relação a laicidade”. A intolerância, segundo ele, não está presente somente nos ataques, mas no tratamento dado em diversos espaços públicos, com ataques a pessoas que portam marcas que as identificam como adeptas de religiões de matriz africana.
— Se você chega com algo ligado à religião no pescoço, as pessoas já começam a olhar torto, param de conversar. Ultimamente tem sido bem nítida a discriminação.

Sônia Giacomini associa o acirramento da violência contra as religiões de matriz africana ao crescimento das denominações evangélicas, registrado no último Censo do IBGE (2010) — 42,3 milhões de fiéis, ou 22,2% da população brasileira.

— O aumento dos evangélicos, sobretudo dos neopentecostais, vem trazendo a prática da persuasão através de uma retórica religiosa muito forte. O neopentecostal tem como missão ganhar adeptos e, quanto mais distante do campo evangélico eles estiverem, mais importante é considerada a missão. Desse ponto de vista, os mais “demonizados” são justamente os adeptos das religiões de matriz africana.
Para a especialista, é necessário garantir a liberdade religiosa:

— Cada vez que se agride, que se impede a realização de um culto, esse direito é desrespeitado. Isso é muito sério.

Procurado para falar sobre as políticas desenvolvidas para a redução da discriminação religiosa, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos não respondeu à reportagem.

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