Políticas públicas avançam, mas extermínio da população negra e casos de racismo mostram distância na conquista da igualdade
Políticas
públicas alavancadas em sua grande maioria pela luta popular têm
aumentado a inserção e participação de negros e negras na sociedade
brasileira. Ao mesmo tempo, números oficiais sobre a desigualdade
social, além de diversos episódios de violência e racismo nas periferias
do Brasil, ainda os colocam entre os mais pobres do país e longe da
conquista pela igualdade.
Não à toa, o Dia da Consciência Negra,
estabelecido na Lei nº 10.639, em janeiro de 2003, transformou-se em
momento de luta e resistência contra a invisibilidade e de enfrentamento
dos muitos obstáculos ainda existentes. Além disso, é uma oportunidade
de homenagear quem ajudou e ajuda na construção da riqueza
afro-brasileira no país. A escolha da data, por exemplo, deu-se no mesmo
dia em que se comemora o aniversário de Zumbi, líder do Quilombo dos
Palmares, respeitado herói da resistência antiescravagista.
"O 20
de novembro é um momento simbólico, pois é o único momento do ano, ou
dos poucos momentos, em que a sociedade realmente [nos] escuta", comenta
Douglas Belchior, professor de História e integrante da UNEafro Brasil.
Segundo ele, embora a data seja importante, a luta dos movimentos
negros no Brasil vai muito além dela.
Genocídio
Mas,
os resultados de quatro anos de vigência são tímidos. O estudo "Os
Negros no Mercados de Trabalho" divulgado, no ano passado, pelo
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(Dieese), mostrou, por exemplo, que os negros no Brasil ainda carecem de
igualdade de oportunidades no mercado de trabalho e, com isso, acabam
ocupando cargos de menor qualificação e, consequentemente, tem salários
mais baixos. A pesquisa revelou que um trabalhador negro (considerando
pretos e pardos) ganha, em média, 36,11% a menos que um trabalhador não
negro (brancos e amarelos).
A
tarefa dos movimentos tem sido, justamente, manter o debate racial
aceso o tempo todo, muito porque a violência dirigida a esta parcela da
população não tem descanso. "Os nossos gritos de dores, infelizmente,
nos últimos anos, têm sido necessário de maneira mais permanente. Isso é
muito drástico", diz Belchior.
Está
fresco na memória, por exemplo, casos como o do desaparecimento do
pedreiro Amarildo Dias de Souza, em junho de 2013, durante uma operação
policial na Rocinha (RJ); a morte do menino Douglas Rodrigues, vítima de
um tiro disparado por um policial militar, na Vila Medeiros, zona Norte
de São Paulo, cuja última frase pronunciada deu nome a campanha "Porque
o senhor atirou em mim?"; o assassinato do dançarino DG na comunidade
do Pavão-Pavãozinho (RJ); e ainda a morte de Cláudia, empregada
doméstica arrastada por uma viatura da PM, também no Rio de Janeiro.
Junta-se
a estes o recente caso de Luciano, desaparecido no Parque Bristol, zona
sudoeste de São Paulo, e do garoto Davi Fiuza, morador da periferia de
Salvador (BA) que, segundo a mãe, foi visto pela última vez sendo
encapuzado e tendo os pés e mãos amarrados por PMs durante uma
abordagem. Ambos são negros e estão desaparecidos há quase um mês.
Longe
de serem casos isolados, as mortes e desaparecimentos de tantos
Douglas, Cláudias, DGs e Amarildos se alastram e preenchem estatísticas
da real situação do negro brasileiro dentro de um país que, em cinco
anos, matou mais pessoas do que a polícia dos Estados Unidos em 30 anos,
segundo recente levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP) que compõe o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. É o mesmo
documento que aponta que, em 2013, 68% das vítimas fatais foram negras. A
maioria delas homens (93,8%) e com idade entre 15 e 29 anos (53,3%).
Negra
e mãe de Edson Rogério da Silva, morto aos 29 anos, Débora Maria é uma
das articuladoras do grupo Mães de Maio, formado por mães que perderam
seus filhos em uma das piores chacinas da história recente paulistana
que, entre 12 e 20 de maio de 2006, matou cerca de 450 jovens nas
periferias das principais cidades de São Paulo.
Para ela, que
alerta para um processo contínuo de extermínio e encarceramento de
negros em massa no País, não há dúvidas que seu filho foi assassinado
por ser negro. "Daqui a pouco vão ter que importar negros da África para
matar", diz.
"Além de ter que se organizar para lutar
politicamente por direitos a gente precisa se organizar por uma coisa
que é ainda mais básica, que é a manutenção da vida, que é ter que pedir
para matar menos o nosso povo", lamenta Belchior.
Desigualdade social
O
Brasil foi um dos últimos países a abolir de vez a escravatura,
oficializada somente no final do século XIX, em 1888, mas não foi capaz
de abolir os processos de exploração do negro, uma vez que não garantia
nenhum tipo de auxílio ou projeto que amparasse político e socialmente
os então ex-escravos. Tais políticas, ainda hoje, patinam no Congresso
Nacional, seja do ponto de vista de elaboração seja no ponto de vista de
colocar em prática as que foram conquistadas.
Entre elas, está a
Lei nº 12.288 sancionada em 2010, pelo então presidente Luis Inácio
Lula da Silva, que após anos de debates, instituiu o Estatuto da
Igualdade Racial. A iniciativa é destinada a “garantir à população negra
a efetivação da igualdade de oportunidades” por meio de políticas de
educação, saúde, cultura, esporte, lazer e trabalho, bem como a defesa
dos direitos das comunidades quilombolas e proteção de religiões de
origem africana.
Tais oportunidades relacionam-se
diretamente a inclusão desta parcela da sociedade no sistema
educacional, principalmente no Ensino Superior. O número de negros e
pardos nesta categoria de ensino, embora tenha aumentado de 4% (1997)
para quase 20% em 2011, é considerado pequeno, visto que negros e pardos
representam mais de 50% da população brasileira, segundo o Censo 2010
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“A
gente só tem a mudança da roupa. Nunca teve uma mudança no conteúdo. E a
gente vive isso hoje explicitamente quando se comemora mais de trinta
anos do fim da última ditadura, com uma democracia que nunca foi tão
seletiva, sempre garantindo privilégios para uma classe social e
condenando as outras", critica Belchior.
Cotas raciais
O
aumento da participação de negros e negras nas IES (Instituições de
Ensino Superior) é atribuído a fatores como a diminuição da população
pobre nos últimos anos e as políticas de indução de crescimento
educacional. É o caso do Programa Universidade para Todos (ProUni), do
Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni),
do Financiamento Estudantil (Fies) e dos programas de cotas raciais
existentes em algumas instituições.
O sistema de cotas é apontado pelo economista Marcio
Pochmann como um dos pontos positivos no combate a desigualdade, embora
faça questão de frisar que elas ainda são insuficientes para a “construção de uma elite negra”.
“Precisamos
ter, obviamente, políticas de caráter universal. Inegavelmente isso
começa com as políticas de cotas, mas é importante avançar para além
disso buscando a universalidade do acesso ao ensino médio e ao ensino
superior, por exemplo, que são questões importantíssimas em termos de
barreira aos avanços em termos de igualdade racial”, avalia Pochmann,
que também é ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) e um dos organizadores do recém lançado “Atlas da exclusão social no Brasil: dez anos depois”.
Presente
no debate sobre violência nas periferias, durante evento comemorativo
dos 13 anos da Revista Fórum, na última sexta-feira (14), o professor da
Universidade Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama, Silvio
Almeida, vai na mesma linha.
Ele, que também foi um dos
responsáveis por redigir o Projeto de Lei de Iniciativa Popular que
institui cotas nas universidades estaduais paulistas - entre elas a
Universidade de São Paulo (USP) - ressaltou que estas políticas não são o
remédio para solucionar todos os problemas, mas são uma primeira via
para “disputar espaços historicamente desiguais”.
"É para você
mostrar para aqueles que ocupam o espaço que se diz público, que não é
público, é estatal (são coisas diferentes). E que [eles] não vão ter
vida fácil. Vão ter que aprender a conviver com negros em espaços que
eles acham que são deles, mas não são. Para mim, o grande sentido da
luta pelas cotas é o conflito, de provocar o conflito e mostrar que nós
estamos dispostos a desocupar, a tirar do espaço público aqueles que
pensam que espaço público é espaço de privilégio racial branco", disse.
Os
frutos desta ocupação nas IES não são exclusivos de instituições
públicas. Neste ano, a aluna do Prouni, Tamires Gomes Sampaio, tornou-se
a primeira pessoa negra a assumir a diretoria do Centro Acadêmico do
curso de Direito da Universidade Mackenzie.
Quilombolas
Coincidência
ou não, nesta segunda-feira (17), uma discussão sobre a titulação de
terras quilombolas foi tema de debate proposto pelo mesmo centro
acadêmico, na mesma universidade.
Quatro dias antes, a população
quilombola recebia com alegria a notícia de que a tão esperada Lei N.
13.043 fora sancionada isentando as terras da cobrança do Imposto
Territorial Rural (ITR), garantindo também o perdão de dívidas do
imposto já cobradas.
Um
marco e um respiro na luta pela titulação que vem ao longo destas
décadas acumulando disputas judiciais. Hoje estão certificadas pela
Fundação Cultural Palmares 2.480 territórios quilombolas, mas somente
187 territórios receberam o título coletivo.
Tradição
A
cultura e a proteção de religiões de origem africana estão apontadas
como pilares no Estatuto da Igualdade Racial, embora sempre presentes no
cerne cultural do país, vez ou outra, vira alvo de ataques racistas.
Para
o presidente da Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da
Cultura (MinC), Hilton Cobra, a discussão precisa de outro foco ao do
direito como outra cultura qualquer de se expressar.
"Pouco me
importa se a elite branca brasileira olha a cultura afro-brasileira de
forma preconceituosa. Eu gostaria de ter como foco outros debates, como
de inclusão, porque eu tenho direito de inclusão tanto quanto outras
matrizes. O que, na verdade, nós queremos é uma atenção melhor a nossa
cultura porque se tivermos esse Brasil será mais rico. Eu só posso dizer
que esse é um país rico e poderoso se todas a matrizes culturais forem
atendidas", diz.
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