quarta-feira, 5 de outubro de 2016

POLITIZAÇÃO DA JUSTIÇA >> Todas as ditaduras do século 20 foram jurídicas, diz Maria Luiza Q. Tonelli

Em entrevista ao IHU, Maria Luiza Quaresma Tonelli fala sobre a judicialização da política, um contraponto à democracia como a concebemos. Segundo ela, "a judicialização da política é um fenômeno que deve ser tratado como um problema que ameaça não só a democracia, mas o Estado Democrático de Direito. A promoção de uma cultura dos direitos não pode ser confundida como a cultura do direito. Quando o direito, através do sistema de Justiça, substitui a política, a soberania popular é mitigada, e a democracia perde seu verdadeiro sentido". A entrevista vale muito pelos elementos que traz quanto ao tema e quanto ao momento vivido pelo país.
De acordo com Maria Luiza, as últimas ditaduras foram permeadas pela ação do Poder Judiciário, sendo que a justiça não pode tomar o protagonismo, sob pena de desconsiderar o papel primordial da democracia, que é ser a voz de milhões de brasileiros representados pelo Executivo e Legislativo. "Decisões judiciais e decisões políticas são, portanto, formas distintas de solução de conflitos", diz ela. E esse se intrometer constante do judiciário sobre a politica e "não devemos confundir judicialização da política com ativismo judicial, decorrente da politização da justiça".
Leia a entrevista concedida ao IHU a seguir.
do IHU - Instituto Humanitas Unisinos
Maria Luiza Quaresma Tonelli compreende que o aprimoramento das práticas democráticas impede que se transfira a credibilidade e a responsabilidade da política para outras instituições, como o Judiciário
Por: João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi
Com clareza e objetividade, a advogada e doutora em Filosofia Maria Luiza Quaresma Tonelli afirma que o grande desafio das modernas democracias constitucionais é saber como se tornar uma democracia representativa aberta à participação popular, “sem que a ação do povo através de movimentos sociais, populares, estudantis ou mesmo de entidades civis representativas não sejam criminalizadas quando, em situações de conflitos, eventualmente excederem os limites do Estado de Direito”. Ela apresenta a fórmula: o aprimoramento das práticas democráticas. Isso evitaria que se transferisse a credibilidade e a responsabilidade da política para outras instituições, como o Judiciário. “É necessário que não se confunda Estado de Direito com democracia. Afinal, todas as ditaduras do século 20 foram jurídicas, tendo um Poder Judiciário convalidando toda espécie de arbítrios praticados pelo Estado”, garante. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, Maria Luiza afirma que “é perfeitamente possível que um Estado possa organizar-se juridicamente sem que seja necessariamente democrático”, pois “não é o Estado de Direito que faz a democracia, mas a democracia que faz o Estado de Direito ser democrático”.
A pesquisa que resultou na tese A judicialização da política e a soberania popular, em 2013, lhe garante elementos para discorrer longamente sobre um dos temas mais importantes da atualidade. “É necessário e urgente o debate sobre o exato papel das instituições do sistema de Justiça para combater o autoritarismo e a violência policial”, defende. A advogada salienta que “os avanços sociais e políticos são difíceis, mas os retrocessos podem se dar da noite para o dia”. Em um ambiente de conflagração e instabilidade, destaca que nem a voz das ruas, nem a vontade dos parlamentares “constituem motivos legítimos para cassar um mandato presidencial sem que um governante tenha cometido, com dolo, crimes que configurem atentado à Constituição Federal”, pois o impeachment fica descaracterizado se não houver prática de crime de responsabilidade comprovado.
Maria Luiza Quaresma Tonelli é graduada em Letras e Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, bacharel em Direito pela Universidade Potiguar – UNP e mestra e doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP. O título de sua tese é A judicialização da política e a soberania popular. Atualmente realiza pesquisa sobre a judicialização da polícia nas democracias constitucionais e sua relação com o neoliberalismo. Escreveu o livro Judicialização da política, a ser publicado em breve pela Fundação Perseu Abramo.
Confira a entrevista
IHU On-Line - O que aproxima e o que dissocia decisões judiciais e decisões políticas como formas de solução de conflitos sociais? É da fusão das duas formas que se origina a judicialização? O que a senhora entende por judicialização?

Maria Luiza Quaresma Tonelli - Em primeiro lugar, é importante esclarecer que decisões judiciais e decisões políticas são formas distintas de tomada de decisões. Decisões judiciais se dão nos tribunais; monocraticamente, quando se trata de juízos de primeira instância, ou pelos colegiados, quando se trata de tribunais superiores. Decisões judiciais têm a ver com o Estado de Direito. Decisões políticas têm a ver com a democracia e são tomadas no parlamento, onde se tornam leis. Nas democracias, a tomada de decisões baseia-se no princípio da maioria, no debate aberto entre os iguais, nas assembleias eleitas pelo voto popular. Por isso a soberania popular é o fundamento da democracia, uma vez que a legitimidade do poder político decorre do voto popular e direto. Na democracia representativa, o poder é exercido pelos representantes eleitos em nome do povo. Nos tribunais, as decisões são tomadas por magistrados, ou concursados ou por indicação política, no caso dos tribunais superiores. Magistrados, como não são eleitos pelo povo, não são representantes políticos. Representam o Estado, ou mais precisamente, o Estado de Direito. 
Decisões judiciais e decisões políticas são, portanto, formas distintas de solução de conflitos. Então, não podemos falar em fusão dessas duas formas distintas de decisão de conflitos, uma vez que, em um regime onde há separação de poderes, nenhum poder pode ultrapassar os limites de suas respectivas competências. A judicialização da política não se origina de uma suposta fusão das decisões judiciais e políticas dos conflitos sociais, mas de uma invasão da política pelo Direito. Vale ressaltar que a judicialização da política não é um problema jurídico, mas um problema político. Não se trata de juízes ávidos por exercer o poder político invadindo a esfera da política. Não é disso que se trata quando se fala em invasão da política pelo Direito. Juízes não atuam de ofício. Só atuam quando provocados. A judicialização da política ocorre quando decisões que deveriam ser tomadas no parlamento são levadas pelos políticos aos tribunais. Não devemos confundir judicialização da política com ativismo judicial, decorrente da politização da justiça.
A judicialização da política significa tratar judicialmente questões que dizem respeito à tomada de decisões de competência do âmbito da política nas democracias. Judicializar significa tratar judicialmente, diz respeito a um julgamento legal. A invasão da política pelo Direito, que caracteriza a judicialização da política, é um fenômeno concernente à ocorrência de uma expansão global do poder judicial em andamento nos sistemas políticos do mundo globalizado nas democracias constitucionais. Tal fenômeno diz respeito à tensão entre a democracia e o Estado de Direito, ou seja, entre a política e o direito. A democracia não se reduz ao Estado de Direito. A democracia não pode ser confundida simplesmente como o regime da lei e da ordem, mas da lei, da ordem e dos conflitos. O conflito nas democracias é legítimo, uma vez que está sempre presente nas sociedades democráticas, considerando a sua pluralidade e complexidade. Democracia é o regime dos direitos e da luta por novos direitos. Democracia é dissenso a priori. O consenso apenas se dá a posteriori no diálogo pela via da política. 
O recurso aos tribunais para resolver problemas políticos, antes que se esgotem todas as possibilidades de diálogo, é um atalho antidemocrático no sentido de que há uma transferência de responsabilidade da política para o poder judicial sem a autorização do povo, o legítimo detentor do poder. Representação política é o exercício de um poder legitimado e autorizado pelo voto da soberania popular, não um cheque em branco.
IHU On-Line - Em que medida é possível afirmar que a judicialização reduz o conceito de democracia, resignando-o apenas à ideia de Estado de Direito?
Maria Luiza Quaresma Tonelli - Considerando que o termo povo representa o sujeito das decisões nas democracias, segundo a regra da maioria, em que as decisões são tomadas pelo poder majoritário (Legislativo), no Estado de Direito democrático, as maiorias ocasionais não podem cercear nem violar os direitos das minorias. É legítimo, portanto, que as minorias recorram ao poder não majoritário (Judiciário) a fim de que vejam atendidas as suas reivindicações ou a garantia de seus direitos. Questões polêmicas que dificilmente seriam decididas no parlamento, principalmente aquelas que envolvem a moral, têm sido judicializadas. Exemplo disso são as decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal - STF nos julgamentos referentes às células-tronco, à união civil entre pessoas do mesmo sexo, à interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, entre outras. 
O que se questiona diante do fenômeno da judicialização da política é o processo de despolitização da democracia, quando setores conservadores da sociedade e da política defendem a supremacia judicial em detrimento do poder político, o que contribui de forma significativa para fortalecer a ideia conservadora de que a democracia é simplesmente o regime da lei e da ordem, excluindo e até criminalizando os conflitos sociais, inerentes a qualquer sistema democrático. A legitimidade da democracia decorre da política, não dos tribunais, uma vez que são as decisões políticas emanadas do parlamento que dão origem às normas jurídicas. Nesse sentido, o que legitima o direito não é o poder estatal, mas da soberania popular. Direta ou indiretamente, todos os poderes exercidos na democracia constitucional têm origem na soberania popular. A investidura de cargos políticos e o exercício do poder dos representantes do povo decorre do fator que é legitimador do exercício do poder político: a eleição direta pelo povo. 
Portanto, vale retornar ao problema da tensão entre democracia (política) e direito. O termo democracia constitucional se constitui num paradoxo, por abrigar conceitos que mostram uma contradição inerente, como afirma Cristina Foroni Consani  em O paradoxo da democracia constitucional: “Enquanto o primeiro remete ao ideal de autogoverno do povo ou de soberania popular, o segundo simboliza o próprio limite à ação política do povo cujo objetivo é preservar tanto direitos fundamentais quanto procedimentos democráticos de alterações promovidas pelas paixões não razoáveis da maioria”.
O grande desafio nas modernas democracias constitucionais é saber como podemos chegar a um modelo de democracia representativa que esteja realmente aberta à participação popular sem que a ação do povo através de movimentos sociais, populares, estudantis ou mesmo de entidades civis representativas não sejam criminalizadas quando, em situações de conflitos, eventualmente excederem os limites do Estado de Direito. Por isso, é fundamental que aprimoremos nossas práticas democráticas, em vez de cairmos na tentação de transferir a credibilidade e a responsabilidade da política para outras instituições, como o Poder Judiciário, diante da descrença generalizada dos cidadãos em relação aos seus representantes e da crise do sistema político e partidário. 
É necessário que não se confunda Estado de Direito com democracia. Afinal, todas as ditaduras do século 20 foram jurídicas, tendo um Poder Judiciário convalidando toda espécie de arbítrios praticados pelo Estado. É perfeitamente possível que um Estado possa organizar-se juridicamente sem que seja necessariamente democrático. Precisamos ter em mente que não é o Estado de Direito que faz a democracia, mas a democracia que faz o Estado de Direito ser democrático.
IHU On-Line - Num contexto histórico, como se dá a expansão do Poder Judicial no Brasil? Em que medida esse poder se expande a partir da inércia de outros poderes? 
Maria Luiza Quaresma Tonelli - Em um sistema republicano, como é o caso do Brasil, os poderes têm suas competências claramente delimitadas e suas devidas responsabilidades, ou seja, todos aqueles que exercem o poder devem responder por seus atos. As instituições do sistema de justiça, como o Judiciário, o Ministério Público, a Advocacia-Geral da União, entre outras, eram mais ou menos invisíveis antes da Constituição de 1988 , pois sua atuação era mais voltada para a técnica. Contudo, após sua promulgação, a Constituição adquiriu uma centralidade muito importante, que se constitui num fenômeno identificado como a constitucionalização das relações sociais, que ampliou o escopo de atuação dessas instituições e, muito especialmente, do Ministério Público e do Judiciário. Um protagonismo que se estendeu a questões políticas, tanto no sentido de solucionar conflitos relacionados a políticas de saúde, educação etc., quanto naqueles conflitos de viés político estrito, como foram as decisões do STF sobre cláusula de barreira , sobre a lei da Ficha Limpa , pertencimento do mandato parlamentar, financiamento empresarial de campanhas e, especialmente após o julgamento da Ação Penal - AP 470, o chamado Mensalão , e, atualmente, com a Operação Lava Jato , no âmbito da primeira instância da Justiça Federal do Paraná, atuando nas investigações da corrupção praticada na Petrobras. 
Como já foi dito anteriormente, o Poder Judicial é não majoritário, mesmo que as decisões do colegiado obedeçam à regra da maioria. Porém, apesar de não ser um poder propriamente político, suas decisões têm consequências políticas. Quando o protagonismo judicial, característico do Estado de Direito nas democracias constitucionais, se transforma em hegemonia do Poder Judiciário, a judicialização da política e o ativismo judicial, juntos, podem nos levar a uma juristocracia, ou seja, ao “governo de juízes”. Um poder que se coloca acima dos outros, sem controle. 
A expansão do Poder Judicial nas democracias constitucionais é um fenômeno global. Dado que a judicialização da política não é um problema judicial, mas essencialmente político, são as condições políticas que favorecem a expansão judicial. Não podemos dizer que tal poder se expande exclusivamente da inércia dos poderes políticos, mas quando uma instituição majoritária, como o Poder Legislativo, sequer debate questões polêmicas como o aborto, inevitavelmente elas acabam chegando aos tribunais. A descriminalização do aborto, em uma democracia, deve ser tratada como questão política, como um direito reprodutivo das mulheres e, acima de tudo, como um problema de saúde pública, não como um problema moral. A moral proíbe, diz o que não fazer. A política diz o que fazer, uma vez que é a esfera dos direitos, da liberdade e da igualdade.
Instituições majoritárias ineficazes também favorecem a judicialização da política quando as oposições políticas ou os grupos de interesses, ao encontrarem dificuldades para a solução de conflitos ou de atendimento de reivindicações no parlamento, levam para os tribunais aquilo que deveria ser deixado para a esfera dos processos de tomada de decisão majoritária, restando ao Poder Judicial colocar fim aos conflitos. 

IHU On-Line - Qual o peso dos meios de comunicação de massa no processo de judicialização? No caso específico da Operação Lava Jato, como a senhora analisa a relação imprensa, Judiciário e Ministério Público? 
Maria Luiza Quaresma Tonelli - O papel dos meios de comunicação de massa nas democracias ocidentais como forma de controle político é um dos temas mais debatidos na atualidade. O papel da imprensa em qualquer sociedade realmente democrática, no desempenho de sua função de informar a fim de contribuir para que o cidadão possa formar sua opinião e assim possa fazer suas escolhas e decisões políticas, deveria pautar-se pela ética jornalística, uma vez que a liberdade de imprensa e o direito à informação são duas faces da mesma moeda. 
Todavia, ocorre que os meios de comunicação de massa nas democracias do mundo capitalista são majoritariamente empresas privadas, submetidas à lógica do mercado e do lucro. Mas não é só isso. Grupos de mídia exercem forte influência política, desempenhando o papel de verdadeiro partido político na defesa de interesses da classe que detém o poder econômico. No Brasil, onde a chamada grande mídia está concentrada nas mãos de pouco mais de meia dúzia de famílias, podemos dizer que ela se constitui no instrumento de poder da classe dominante, a que tem a força econômica e o poder financeiro. Deste modo, o discurso da defesa da liberdade de expressão e de imprensa como garantia da democracia não se sustenta diante dos padrões de manipulação a que submetem aqueles a quem deveriam informar. Na democracia do capitalismo globalizado, a liberdade de imprensa tornou-se liberdade de empresa.
No que se refere ao peso dos meios de comunicação de massa no processo de judicialização da política, podemos dizer que o sistema de mídia exerce um papel fundamental, levando em conta que a criminalização da política é consequência da judicialização. A chave para entender isso é a seguinte: o debate político, hoje, se reduz ao tema da corrupção. Nada é mais importante do que isso. O cidadão é bombardeado dia e noite, dia após dia, com notícias sobre casos de corrupção que são transformados em escândalos. Não se trata aqui de negar que a corrupção existe e que não deva ser combatida. O problema é a seletividade da mídia na divulgação dos casos de corrupção. Claro que a corrupção pode dar origem ao escândalo político, mas as atividades corruptas só podem se tornar foco de escândalo se elas se tornarem conhecidas e amplamente divulgadas. A corrupção tem que se tornar pública para se tornar um escândalo e para isso é fundamental o discurso infamante, o linchamento moral de pessoas públicas ou de partidos políticos. 
A partir daí, o julgamento moral substitui o julgamento político. Fazer com que o cidadão avalie a política com critérios exclusivamente morais é fundamental quando se pretende atacar o adversário ou desestabilizar um governo. O adversário político é transformado em inimigo a ser combatido ou mesmo eliminado da cena política. O recurso à condenação moral através da imprensa para derrubar presidentes é historicamente conhecido no Brasil. Foi assim com Getúlio Vargas , com João Goulart  e com Dilma Rousseff , bem como agora ocorre em relação ao ex-presidente Lula , a fim de inviabilizar qualquer possibilidade de sua eventual candidatura à presidência da República.
Nesse contexto, digamos que a relação imprensa, Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal contribuiu de maneira surpreendente para o “sucesso” da Operação Lava Jato perante a opinião pública, influenciada pela opinião publicada nos meios de comunicação de massa, que aos poucos vai favorecendo a formação de uma cultura da punição. O ódio numa sociedade que se caracterizava pela tolerância, pelo menos aparentemente, decorre da sanha punitiva promovida pelos meios de comunicação, através de jornalistas, de programas de entrevistas, de comentaristas políticos e, principalmente, dos telejornais. Causa espanto ler, ouvir e ver profissionais da mídia dizendo que a sociedade “apoia” a Operação Lava Jato e que o clamor popular exige a punição dos acusados para que o país seja “passado a limpo”. Ora, qualquer aluno aprende no início do curso de Direito que nenhum juiz pode se deixar influenciar pelo clamor popular. Um dos princípios do exercício da magistratura é a imparcialidade nos julgamentos. 
Em suma, ainda há muito que ser debatido sobre a relação entre a mídia e o sistema de Justiça quando tal relação beira a promiscuidade, destruindo os valores democráticos e corroendo os pilares do Estado Democrático de Direito.
IHU On-Line - A partir do cenário atual do Brasil, no contexto de impeachment, operação Lava Jato etc., é possível afirmar que vivemos em um estado de judicialização da vida? Por quê? E quais as consequências?
Maria Luiza Quaresma Tonelli - Não temo afirmar que o cenário atual do Brasil, no contexto do impeachment e da operação Lava Jato, tem uma profunda relação com o estado de judicialização da política e da vida dos cidadãos, considerando que a judicialização da política no Brasil atingiu patamares alarmantes nos últimos anos, servindo para consolidar a ideia de que a legitimidade da democracia decorre mais dos tribunais constitucionais do que da política, ou seja, da democracia como poder do povo exercido pelos representantes eleitos.
O que teria a ver o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff com a judicialização da política? Podemos afirmar que tal fato decorreu, em grande medida, de um processo de criminalização de um governo, de uma governante, de seu partido político e da própria política, uma vez que a criminalização da política é consequência da judicialização. Costumo dizer que tal processo de impeachment foi o ápice da judicialização da política neste país, onde sua mandatária maior foi impedida de terminar seu mandato em razão de uma condenação sem que a prática de crimes de responsabilidade tivesse sido comprovada. Se tivessem provas e convicção do cometimento dos crimes a ela imputados, por acaso teriam mantido seus direitos políticos preservados?
É preciso esclarecer que impeachment, palavra da língua inglesa que significa impedimento ou impugnação do mandato, é o termo utilizado para o processo constitucional a fim de que se obtenha a antecipação do final do mandato de um presidente pelo Congresso Nacional. A Constituição Federal de 1988 elenca de forma taxativa os motivos pelos quais o presidente da república estará sujeito ao impedimento de seu mandato. Não se questiona, portanto, a legitimidade de um processo de impeachment em si mesmo, mas a condenação da presidente da República sem provas.
O impeachment é um processo jurídico-político. Jurídico porque no sistema presidencialista a cessação do mandato de um presidente, que é chefe de governo e de Estado, está sujeita ao que diz explicitamente a Constituição nos incisos do artigo 85 e definidos em lei especial. É jurídico porque tem uma base legal. É político por se tratar de um processo que tem início com a sua admissibilidade na Câmara dos Deputados, seu processamento e julgamento final no Senado Federal. Portanto, apesar de se tratar de um processo que necessita de condições políticas para que ocorra, não é verdade que seja um processo eminentemente político, como se a base legal fosse secundária. Nem a “voz das ruas”, nem a simples vontade da maioria dos parlamentares constituem motivos legítimos para cassar um mandato presidencial sem que um governante tenha cometido, com dolo, crimes que configurem atentado à Constituição Federal. Sem a prática de crime de responsabilidade devidamente comprovado, o impeachment é uma violação à Constituição e, portanto, ilegal e ilegítimo. 
A não comprovação de crime de responsabilidade de uma presidente em nosso sistema presidencialista significou, além de uma injustiça praticada contra a mandatária maior da nação, a cassação da soberania popular. Portanto, um golpe contra a democracia. Um golpe com aparência de legalidade. Um golpe judicializado, diria. O atual momento político em que se encontra o país reflete uma verdadeira deterioração das instituições democráticas, bem como uma ameaça ao Estado Democrático de Direito.
A operação Lava Jato, que começou com as investigações para apurar um grande esquema de corrupção na Petrobras, aos poucos mostrou a sua verdadeira face. Uma operação realizada pelo sistema de Justiça, mas com viés político. Vazamentos de ligações telefônicas divulgados amplamente e à exaustão pela mídia, Globo à frente, prisões de pessoas para obter delações (premiadas ou forçadas?), denúncias do MP sem provas (via Power Point), como vimos em relação ao ex-presidente Lula, tornado réu com mais sete pessoas (inclusive sua esposa) pelo juiz Sérgio Moro . Enfim, tudo isso cai como uma luva para que a sociedade seja envenenada diariamente contra o PT, hoje rotulado como o “mal”, um partido tratado como uma “organização criminosa” por membros do MPF, do Judiciário e principalmente pela mídia.
Ora, nesse contexto de espetacularização do processo penal, o que a sociedade deseja? Punição, custe o que custar. Os fins justificam os meios. Deste modo, a pauta da política se reduz ao tema da corrupção. Nada mais conveniente para deslegitimar a política e legitimar a hegemonia do Judiciário. O ambiente perfeito para a judicialização de todas as esferas da vida numa sociedade que vê no Judiciário não o poder da tutela jurisdicional, mas como o poder que deve tutelar a política e a democracia. Esse desejo de tutela é ingênuo e infantil, na medida em que as pessoas se esquecem de que, na democracia, o poder emana da vontade do povo expressa nas urnas, não da vontade dos juízes. 
As consequências dessa total judicialização são várias, mas cito aqui apenas a principal: o processo de fascistização da sociedade, que hoje enxerga a política como uma atividade “suja”, que julga os políticos como se todos fossem corruptos e, o mais preocupante de tudo, que é a visão do outro como inimigo a ser desqualificado, combatido e até perseguido. Esse outro pode ser um vizinho, um amigo, um colega de trabalho, até um parente. Nesse sentido, tenho observado que as relações sociais estão cada vez mais hostis, com tamanho esgarçamento do laço social. É uma sociedade autoritária e de alto risco.

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