Em levantamento estatístico inédito do IBGE (1) sobre mobilidade educacional foi publicado hoje (15/12/2017) e evidencia a forte correlação empírica entre o nível de escolaridade dos pais e o nível de escolaridade dos filhos, confirmando a tese da “reprodução cultural da desigualdade” exaustivamente investigada por sociólogos e sociólogas, dos quais se destacou Pierre Bourdieu na França, e no caso do Brasil, o sociólogo potiguar Jessé Souza.
Bourdieu (2) em estudo empírico clássico sobre a formação dos gostos culturais da população da França mostrou que a desigualdade social é moldada não somente por determinantes econômicos (renda, ocupação profissional e patrimônio material), mas também por determinantes culturais, a exemplo dos modos de percepção, comportamento, gostos, julgamentos e sentimentos adquiridos bem antes da escola, em especial, nas experiências de interação com os pais. Noutros termos, Bourdieu demonstrou empiricamente que existiam diferenças de processos de aprendizagem cultural entre jovens oriundas de famílias de classe médias e classes médias altas, e jovens oriundos de famílias das classes populares. E que essas diferenças nos processos de aprendizagem resultavam em pontos de partida desiguais na educação escolar. Enquanto os jovens das classes médias e altas ingressavam na escola com atitudes comportamentais tais como disciplina corporal, capacidade de concentração e reflexão abstrata, os jovens das classes populares ingressavam na escola, carentes dessas “disposições corporais” importantes e necessárias para a aquisição bem sucedida dos conhecimentos e práticas escolares. Bourdieu deu o nome de “capital cultural” a esse conjunto de “disposições mentais e corporais” adquiridas principalmente via ações psicossomáticas e corporais durante a socialização familiar, e que constituem a pré-condição social de aquisição bem sucedida do “capital escolar”, este último, conjunto de disposições culturais “secundárias” adquiridas durante a própria educação escolar. Esse capital cultural ou “capital cultural herdado” é, segundo acreditava Bourdieu, o determinante cultural que, em conjunto com outras espécies de “capital” (econômico e social), atua na produção e reprodução social das desigualdades de classes das sociedades modernas.
No Brasil, o sociólogo potiguar Jessé Souza (3) tem se destacado por apresentar pesquisas semelhantes acerca das condições de produção e reprodução da desigualdade social em nosso país. Com a diferença de acrescentar o peso da variável “macro” da “sociabilidade escravocrata” que atua como passado institucional do período colonial que ainda pesa sobre a dinâmica de desigualdades sociais do presente no Brasil. Outros estudiosos da desigualdade brasileira como Adalberto Cardoso (4) e Marta Arretche (5) também tem apontado a inércia histórica da desigualdade social brasileira. Mesmo as pesquisas de Marta Arretche e colaboradores que se mostram mais otimistas e apontam mudanças e melhorias nas taxas de desigualdades nos últimos 50 anos, também evidenciam a interdependência estrutural entre as variáveis de classe, gênero e raça na permanência das desigualdades do país.
No “retrato” mais atualizado das múltiplas desigualdades do Brasil, os dados “quanti” do IBGE também apontam na direção do papel decisivo da socialização familiar na trajetória escolar dos filhos. Esse estudo quando cruzado com aqueles outros estudos longitudinais anteriormente mencionados tendem a confirmar que a correlação existente é também de causalidade.
Segundo o mesmo estudo do IBGE, aproximadamente 59 milhões de brasileiros vivem na chamada linha de pobreza (classificação conforme o Banco Mundial). Também foi apontado que a taxa de empregos com vínculo formal alcançou os níveis mais baixos no ano de 2016. Outro dado empírico importante apontado pelo estudo do IBGE é a significância estatística das variáveis de gênero e raça na composição da população econômica mais vulnerável do Brasil. Pretos e pardos, juntos, totalizam 78,5% dentro dos 10% da população com os menores rendimentos do país. Além disso, em 2016, pretos e pardos eram 62,6% da população desocupada e também a maior proporção dos trabalhadores sem carteira (21,8%). Em relação ao universo interno dos 61, 2% dos trabalhadores formais em 2016, também a pretos e pardos se encontram pior posicionados que os brancos, constituindo 54,6% dos trabalhadores formais contra 68,6% de trabalhadores brancos formais.
Sobre como se comporta a variável de “gênero”, as mulheres com trabalhos formais tem rendimento equivalente a 76% dos rendimentos dos homens, assimetria de gênero dos rendimentos que também se reproduz nas ocupações profissionais informais. Finalmente, o estudo apresenta também indicadores sociais referentes aos jovens e aos territórios do país, destacando, por exemplo, que a população jovem foi a mais atingida com a crise de 2016 e os estados do Piauí e do Acre como sendo os territórios onde se encontram mais de 10% da população residindo em domicílios sem banheiros em 2016.
De modo geral, o estudo do IBGE confirma o peso da socialização familiar e da interdependência estrutural entre classe, gênero e raça na produção e reprodução das desigualdades existentes no Brasil. Uma nova e importante fonte de consulta para especialistas, formuladores de políticas públicas e, principalmente, para a população brasileira conhecer mais sobre os dilemas sociais de seu país. Ou enfrentamos esses dilemas de civilização em nossa sociedade ou continuaremos a ser uma das sociedades mais injustas e desiguais do mundo.
1)As informações do IBGE sobre as múltiplas desigualdades do Brasil foi publicado no estudo “Síntese de indicadores sociais” (SIS) e pode ser acessado no seguinte endereço:https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/18824-sintese-dos-indicadores-sociais-um-em-cada-quatro-jovens-do-pais-nao-estava-ocupado-nem-estudava-em-2016.html
2) “A Distinção” (Editoras Zouk/EDUSP, 2007) foi considerado na década de 1970 como o mais importante estudo em ciências sociais sobre os mecanismos sociais de produção e reprodução das desigualdades em países do Atlântico Norte como a França.
3) A obra “A Ralé Brasileira” (Editora UFMG, 2009) tornou-se um “clássico contemporâneo” sobre os efeitos da socialização familiar na produção e reprodução de desigualdade brasileira.
4) “A construção da sociedade do trabalho no Brasil” (Editora FGV, 2010)
5) A obra “Trajetórias das desigualdades” (Editora UNESP, 2015) talvez seja o estudo mais profundo e detalhado sobre as trajetórias da desigualdades do Brasil já feito na última década. Sobretudo, pelo enfoque multidimensional das desigualdades.
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