No dia em que o novo presidente do Brasil foi eleito, 29 de outubro de 2018, após um resultado eleitoral relativamente previsível, uma fantasia de Halloween estarreceu uma parte considerável da sociedade brasileira. Além de correntes no pescoço, nas mãos e nos pés, o figurino era composto também de longas e grossas cicatrizes nas costas e de um trapo branco que cobria a cintura e as coxas. Para completar e fechar o reprovável ornamento, uma camada de black face em cima do corpo branco. Estava assim figurado de escravo um corpo infantil, pronto para uma festa em uma das escolas mais caras de Natal, concebido e adornado por sua própria mãe, que exibiu orgulhosamente nas redes sociais sua obra, a partir de um perfil que propagandeava a candidatura de Jair Bolsonaro. Aos símbolos bolsonaristas (17, emoticon de armas, cores do Brasil etc), se juntava a fantasia do menino escravo.
Tal fato, que está merecendo a devida e necessária repercussão, guarda relações importantes com o fenômeno do bolsonarismo. E isso não só porque a autora da fantasia, a jornalista Sabrina Flor, é uma eleitoral convicta e propagandística de Jair Bolsonaro, mas sim porque a fantasia criada para o seu filho está, simbólica e discursivamente, em perfeita harmonia com as narrativas bolsonaristas sobre o nosso passado nacional, em especial aqueles traumáticos, ligados à escravidão e à ditadura militar de 1964. A concepção, execução e publicização do traje de escravo não está em contradição com o bolsonarismo. São dois eventos irmanados, logo indissociáveis, em que o segundo atuou como condição de possibilidade imediata do primeiro.
Após compor a fantasia a partir de um olhar racista e senhorial (vide as correntes e as cicatrizes no corpo, bem como a semi nudez deste, coberto apenas por um farrapo branco), o qual enfatiza a dominação escravocrata, Sabrina Flor tentou se defender com as seguintes palavras: “Ñ leiam livros de história. Eles dizem q existiu escravidão d negros no país, mas isso é mentira.” Prevendo a polêmica em torno do passado escravocrata nacional, a jornalista ancorou-se logo no argumento fácil do negacionismo: não houve escravidão no Brasil. Contrariando não só livros de história e de historiadores, mas vários documentos históricos e registros materiais, afirmou-se a inexistência da escravidão. Porém, mais do que negar a existência factual desta instituição, o que parece estar em jogo no post em tela é o seu sentido.
Sabrina Flor ataca, tanto com a fantasia quanto com suas palavras, o sentido violento, trágico e doloroso da escravidão. Para ela, a escravidão não foi uma prática horrenda, cruel, supliciante para homens e mulheres, como apontam os livros de história. Mera relação banal de uso de mão de obra, a escravatura seria coisa do passado, distante, sem nenhuma ligação com o presente. Daí porque se poderia representá-la sem nenhum constrangimento nos dias atuais. Embora o corpo infantil apresentasse cicatrizes em alto relevo, a escravidão foi encenada como não sendo uma ferida nacional, um trauma histórico para milhares de pessoas que até hoje sentem tal estigma. É justamente esse significado cruente da escravidão que é negado, de modo que, uma vez silenciado, permite um infame “faz de conta”, uma absorção do filho por um personagem, como se o escravo fosse apenas um papel saído de alguma ficção, logo disponível para quem quiser retratá-lo. Tudo não passaria de um espetáculo, em que o escravo é só um dos figurinos disponíveis. Eis aí teatro da insensibilidade, encenado por mãe e filho e aplaudido por demais pessoas brancas.
Esse mesmo negacionismo suavizador da violência encontra-se em várias declarações de Jair Bolsonaro. No dia 23 de outubro, portanto sete dias antes do caso acima descrito, o presidenciável declarou que, se eleito, iria “acabar com coitadismo de nordestino, de gay, de negro e de mulher”. Os efeitos negativos do preconceito regional, a homofobia fatal para vários grupos LGBTs, a herança nefasta do passado escravista, o racismo estrutural da sociedade brasileira e o feminicídio de várias mulheres, reduzem-se a um coitadismo da parte das vítimas, de modo que “isso não pode continuar mais existindo”. Assim como Sabrina Flor, Bolsonaro também negou a dimensão cruenta da escravidão, tratando-a como algo que ficou no passado, sem efeitos no presente.
Na sua participação no Roda vida, no dia 07 de julho do corrente ano, Bolsonaro apresentou uma estratégia negacionista ainda mais perversa. Após ser questionado sobre o que faria quanto à dívida histórica da escravidão, respondeu que não tinha escravizado ninguém e que “os portugueses nunca pisaram na África e que foram os próprios africanos que criaram a escravidão”. Além de desconhecer a história do tráfico atlântico dos séculos XV-XIX, Bolsonaro ainda se valeu de um estratagema para culpabilizar os africanos pela escravatura que padeceram, deslegitimando assim qualquer política de reparação no Brasil.
Assim como a escravidão, o passado sensível da ditadura militar, inaugurada com o golpe civil-militar de 1964, também costuma ser abrandado pelo presidente recém eleito. É conhecida suas afirmações de que não houve golpe nem muito menos ditadura. Em sua entrevista no Jornal Nacional, no dia 28 de agosto deste ano, disse que, em detrimento dos historiadores, os quais deveriam “ficar para lá”, preferia ficar com a declaração de Roberto Marinho sobre o “regime democrático de 1964”. Até mesmo as práticas de tortura e de ocultamento de cadáveres costumam ser relativizadas por Jair Bolsonaro, em nome de uma pretensa guerra civil entre comunistas e militares.
Tal discurso negacionista de nossos passados traumáticos está na base do seu dito projeto de união nacional, de fim das diferenças entre homens e mulheres, brancos e negros, heterossexuais e homossexuais, sulistas e nordestinos. Na retórica bolsonarista, expressa tanto por Jair Bolsonaro como por Sabrina Flor, essas divisões conflitivas seriam produtos das próprias vítimas, invenção mesmo destes. É o que se observa quando um diz que “as políticas afirmativas reforçam o preconceito” e a outra que “Ñ discuta com essa afirmação, pois vc estará sendo racista.” A culpabilização das vítimas, negando o sofrimento e a opressão que estes sofrem, é o componente perverso dessa retórica bolsonarista da negação, marcada por uma reprovável insensibilidade ante o sofrimento histórico das minorais no Brasil. Tal discurso modela o movimento atual “o Brasil é minha cor”, como se não houvesse preconceito, discriminação e racismo contra negros e negras em nossa sociedade. O fantasma da democracia racial, com seus velhos trajes, ressurge na retórica negacionista do bolsonarismo.
Se o passado brasileiro é apaziguador, sem grandes conflitos e tragédias, por que o presente e o futuro não poderiam sê-los também? Tal é a lógica do bolsonarismo. Passado, presente e futuro encadeiam-se, reproduzindo a velha tradição brasileira conservadora de uma história incruenta, sem luta de classe, racismo, genocídio, terrorismo, tirania e golpes de estado. Uma historia ordeira, ordenada, vista do mundo da Ordem, da Caserna, da Casa-Grande, que naturaliza as atrocidades históricas, não vendo nenhuma mancha em nossa história, nenhuma gota de sangue em nosso passado, calando todo e qualquer grito de dor de nossos antepassados.
Assim, combater tal retórica negacionista é uma demanda urgente não só por conta do passado e da memória daqueles e daquelas que sofreram, mas sobretudo em razão do presente e do futuro. Negando a tragédia do passado, o bolsonarismo terceiriza a violência no presente e arquiteta o futuro fascista que deseja, um futuro nocivo para as minorias, para as conquistas dos movimentos sociais, para a classe trabalhadora, para a cidadania plena, logo para a própria democracia brasileira. Seu projeto de sociedade é fascista, pois vê harmonia onde há conflito, ordem ao invés de violência, paz em vez de guerra, unidade em detrimento de fraturas. Sabrina Flor, fantasiando seu filho de escravo, fazendo de um passado trágico e doloroso um mero figurino, pronto para ser fotografado e postado nas redes sociais, anuncia o perigo bolsonarista que se avizinha: a banalidade do mal.
Por Diego José Fernandes Freire (professor de história) no site Carta Potiguar.
Sem comentários:
Enviar um comentário