No Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, monumento localizado na Praça dos Três Poderes, em Brasília, está guardado o “Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria”, também conhecido como o “Livro de Aço”, obra que compila nomes de brasileiros e brasileiras considerados fundamentais em acontecimentos históricos que se passaram no país em diferentes épocas. O livro é feito em folhas de aço, tem dez páginas e existe desde 1989.
Atualmente são 52 nomes inscritos nele, dos quais nove são de mulheres, entre elas uma índia potiguar que teria nascido na região onde hoje localiza-se o bairro de Igapó, na Zona Norte de Natal. O nome dela? Clara Filipa Camarão, esposa do índio Filipe Camarão, ambos catequizados por padres jesuítas. Segundo conta-se, eles teriam lutado juntos contra a invasão holandesa.
Até aqui você deve estar se perguntando como uma personagem do Rio Grande do Norte, nascida na metade do século XVII, foi tão importante para a História e você mal sabia o nome dela? Pois é. Mas, apesar de receber a honrosa inscrição no “Livro de Aço” desde 2017, quando foi aprovado um projeto no Senado, no dia 7 de março, proposição da então deputada federal Sandra Rosado para incluir o nome da índia no livro, a indicação em torno do nome está longe de ser consenso entre os historiadores.
O maior motivo da recusa de alguns historiadores em torno do nome de Clara Camarão é a carência de registros históricos sobre os feitos da índia e até sobre sua origem. Para se ter ideia, estados como Ceará e Alagoas também reivindicam a naturalidade de Clara. Como há poucos registros históricos sobre a índia, há quem argumente que a inscrição dela no “Livro de Aço” foi sem fundamentação e, portanto, imerecida.
O QUE ELA TERIA FEITO DE TÃO IMPORTANTE
Para o professor e historiador Lênin Campos, do Blog Natal das Antigas, numa história escrita por homens, as mulheres sempre serão esquecidas. Ele considera justa a inscrição no livro pelos feitos da índia potiguar. O livro, inclusive, também homenageia o índio Filipe Camarão em suas folhas de aço.
“Como é costume da época as mulheres estarem com seus maridos na guerra ou na paz, Clara Camarão acompanhou Filipe Camarão em todos os feitos e ele é o embaixador dos índios de toda a América para com a Europa. Então isso é muito forte e ela o acompanha no processo todo. Então por que não [a inscrição no livro] se ela sempre foi a parceira dele em tudo?”, argumenta Lênin.
Em um livro do religioso e escritor português Frei Manuel Calado, testemunha de vários acontecimentos históricos, inclusive de batalhas na época das invasões holandesas, é possível encontrar passagens curtas sobre a índia Clara Camarão, inclusive uma em que ele relata que ela acompanhava o marido a cavalo e com uma lança na mão.
Apesar dos poucos registros sobre os feitos de Clara, o historiador Alexandre Rocha, que comanda a Caminhada Histórica do Natal, diz que faz todo o sentido considerá-la uma guerreira. “Normalmente as mulheres vão lutar no meio dos homens e ela pode ter arregimentado as mulheres ao redor e atacado junto. O problema é que é mais difícil você poder bater nessa tecla numa história que foi contada por homens. Mas faz sentido sim”, afirma.
O historiador Erick Rodrigues, mestrando em América Colonial pela UFRN, concorda que é provável que ela tenha lutado com o marido, mas como as fontes são escassas é impossível ser categórico nessa afirmação. Para ele, Clara Camarão só é lembrada pela fama do marido.
“Não existia muito espaço para as mulheres nos discursos daquela época. Mas na verdade ela não tem nada de excepcional. Centenas de mulheres desconhecidas devem ter participado do conflito. E o fato dela ser pouco lembrada é porque ninguém liga muito para a História local, porque a identidade estadual é pífia e porque ela é mulher, obviamente, e não tinha muito espaço nos discursos da época”, declara.
Sobre o “Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria” em si Erick Rodrigues explica que a obra é muito mais uma “construção ideológica e uma construção política que se aproveita de uma narrativa histórica para criar uma noção de brasilidade que não existia na época”, conclui.
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