sexta-feira, 24 de maio de 2019

UM TEMA QUE PRECISA SER MAIS DISCUTIDO >> A ponte e a indigência afetiva de todos os dias


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Os recorrentes casos de suicídio na Ponte Newton Navarro têm causado preocupação na sociedade natalense, que atônita lança especulações diversas sobre as motivações que levam as pessoas à tirarem a própria vida. Pensamos ser o momento de lançar reflexões sobre o tema apontando os casos de suicídio deste contexto como uma “ponta do iceberg”, sendo limitante falar sobre o fato sem discutir a constituição da relação indivíduo e laço social.
Produzir reflexões sobre os indivíduos é também pensar a sociedade e a cultura as quais os mesmos estão inseridos. No texto “Psicologia das massas e análise do ego” (1921), Sigmund Freud  afirma que não existe constituição solipsista do psiquismo, pois “a psicologia individual é simultaneamente psicologia social” (p. 5). Pensar constituição de sujeito, produção de subjetividade a partir da alteridade e entender o outro como eixo constitutivo do psiquismo.
Podemos retirar alguns importantes elementos estatísticos para fomentar nossa reflexão, como por exemplo, a de que parte significativa dos que tentam ou conseguem suicidar-se na “Ponte nova” são jovens. Daí que podemos refletir sobre o desamparo e a indigência afetiva do jovem contemporâneo, aquele que perambula com suas inquietações existenciais e que comumente tem dificuldade de encontrar um lugar no mundo e significados que lhe dê sustentação interna.
A invisibilidade caracteriza bastante o cotidiano do adolescente contemporâneo, pois suas singularidades não são reconhecidas e suas dores tidas como “frescura de adolescente”.  A ausência de lugar empático e acolhimento para estes jovens faz parte de uma sociedade e cultura de adultos que não conseguem minimamente se colocar no lugar dos adolescentes e reconhecer a sua delicada travessia de constituição de identidade e amadurecimento emocional rumo aos desafios da chegada da vida adulta.
E estes jovens que tem vontade de tirar a própria vida, são cuidados por quem? Qual é o seu lugar relacional? Sabe-se que parte significativa destes jovens é oriunda de estrutura familiar degradante (afetivamente paupérrima ou precária). São oriundos de mães e pais pouco empáticos ou até omissos e agressores, incapazes de gerar atmosfera afetiva geradora de carinho, segurança, cuidado e fortalecimento interno tão necessários para constituição identitária rumo à vida adulta.
Sabemos que muitos de nossos adolescentes são verdadeiros órfãos de pais vivos, que carregam miseráveis referências de seus laços maternos/paternos. Parte significativa não teve a experiência de ser dignamente cuidado e afetivamente alimentado por pais sadios psiquicamente, empáticos e protetores. As sensações de abandono, exclusão, agressão e invisibilidade fazem parte do cotidiano interno destes adolescentes na sua relação com a sociedade, a mesma que se nega a enxergar elementos subjetivos em tragédias psicossociais como esta.
A sociedade que tem dificuldade em reconhecer os processos subjetivos dos sujeitos em sofrimento psíquico é a mesma que estimula a busca doentia por visibilidade, “sucesso”, aparência, ostentação material e a busca por paraísos artificiais. Essa busca (lugar inatingível para maioria) tem um preço alto emocionalmente e por isso não resta outro recurso a não ser construção de uma vida “fake”, “photoshopada” e editada (podendo “modificar” a vida real tão desgraçada e inaceitável: partes do corpo e lugar social).
Sabemos que fora da Ponte a VIDA HUMANA vale muito pouco e é não linda. É maltratada e vilipendiada todos os dias, com o subemprego, violência moral, indiferença, coisificação, falta de acesso à educação de qualidade, crueldades, invisibilidade, intolerâncias, preconceitos bizarros; e violada principalmente pela objetificação e pela cultura da produtividade em que somos medidos pela capacidade de produção e obtenção de bens materiais.  Eis um cenário social nada acolhedor para sujeitos que já trazem consigo vulnerabilidades e fragilidades constitucionais comprometedoras (referencial interno empobrecido e baixa capacidade de gerenciar frustrações e limitações que fazem parte do percurso da vida).
Ao mencionar estrutura familiar degradante e paupérrima afetivamente reconhecemos a DEMOCRACIA DO DESAMPARO e da indigência afetiva, pois tanto famílias pobres quanto famílias abastadas fazem parte da mesma sociedade.  A questão material e social não é o determinante no que tange a capacidade de pais e mães amarem, cuidarem seus filhos e gerar adultos emocionalmente sadios.  Basta lembrarmos que sujeitos abastados também se recorrem da “Ponte da nova” para tirar a própria vida…uns até dizem ao saber da notícia : “Mas ele tinha tudo”…
Os atributos externos não são capazes de sustentação interna, equilíbrio, saúde psíquica/emocional, daí o adoecimento severo, depressão, culpa, sensação de fracasso, vazio, autoestima baixa, autorejeição e vontade de morrer. A busca excessiva de recursos externos para aparentar “vida feliz” demonstra o quanto os sujeitos comuns não conseguem construir significados internos sólidos capazes de lhe garantir sobrevivência psíquica e emocional diante das inúmeras intempéries que fazem parte dos vínculos humanos e da vida em sociedade de modo geral.
Pensar os casos de suicídio isoladamente é assistir e julgar uma novela apenas pela exibição do último capítulo. Se faz necessário pensar a partir da elaboração do enredo (cultura), da composição dos personagens (intersubjetividade) e do cenário (sociedade). Faz parte do senso comum não enxergar historicidade e singularidades dos sujeitos em suas ações sociais, limitando-se a especulações dos atributos externos como determinantes para execução dos seus atos.
Ao fazermos escuta empática dos jovens contemporâneos vamos perceber a delicada dinâmica psíquicas dos mesmos ao lidar com os desafios do cotidiano, numa sociedade que tem como um de seus pilares de sustentação a APARÊNCIA. Muitos destes jovens desamparados apenas tem como muleta de sua indigência afetiva as ilusões e fantasias oriundas das redes sociais. E o photoshop “emocional” é ferramental crucial para suportar as inquietações de uma vida anônima, morna, pobre e infeliz.
E o resultado desta cegueira diante do mal-estar psíquico do jovem contemporâneo é exatamente a resposta de “autoridades” para o assunto: construir telas de proteção na Ponte Newton Navarro para evitar o suicídio!!!! Da mesma forma daqueles que não conseguem pensar na alarmante violência urbana antes do gatilho apertado. Ou seja, não há nada para ser discutido sobre a relação entre sujeito, cultura e sociedade (complexidades e dinâmicas psíquicas), apenas sujeitos que estranhamente querem acabar com a vida.
Nossa sociedade é uma sociedade doente, regida pelos valores do “sucesso”, aparência, ostentação e indiferença diante da dor de seus semelhantes. E nossos jovens estão vulneráveis e desamparados diante de adultos (também desamparados) aleijados afetivos. Os que ainda não cometeram suicídio ESTÃO PERDENDO A VIDA TODOS OS DIAS e em seus comportamentos agressivos ou depressivos estão pedindo socorro diante da ignorância e cegueira coletiva para o mal-estar psíquico e emocional do humano, que só tem sofrimento reconhecido exatamente quando chegam nas grades da Ponte Newton Navarro…exatamente no último capítulo deste triste enredo que todos nós ignoramos.
Títulos sugeridos para refletir sobre mal-estar psíquico antes de pensar no suicídio:
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre as fragilidades dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
BIRMAN, Joel. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
LEBRUN, Jean P. A perversão comum: viver juntos sem outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
MCCAFFREY, Trisha (org.) Transtornos emocionais na escola. São Paulo: Summus, 1993.
ANTUNES, Celso. Alfabetização emocional. Petrópolis: Vozes, 1999.
MAIA, Marisa Schargel (org.). Por uma ética do cuidado. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
WINNICOTT, D. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
CORNEAU, Guy. Pai ausente, filho carente. São Paulo: Brasiliense, 1989.
FILHO, José Martins. A criança terceirizada: os descaminhos familiares no mundo contemporâneo. São Paulo: Papirus, 2007.
“Disseste que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira
E há tempos nem os santos
Tem ao certo a medida maldade
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem no sorriso
Só acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção” .
(Legião Urbana em “Há tempos”, 1989. LP As quatro estações)

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