domingo, 10 de setembro de 2017

ARTE E CULTURA X CONSERVADORISMO SOCIAL >> "Projeto de lei" criminaliza artistas de rua em Natal

Um projeto de lei protocolado em março pelo vereador Felipe Alves (PMDB) transfere para a prefeitura de Natal e aos proprietários de imóveis particulares a decisão sobre o que é arte ou vandalismo na cidade. A proposta, que tramita na Câmara Municipal e deve ir à votação ainda este ano, também limita a livre criação de grafites ao consentimento ou não dos gestores públicos e donos de casas e prédios privados.
O PL 51/17 já passou por duas comissões: a de Legislação, Justiça e Redação final; Finanças, Orçamento, Controle e Fiscalização; e parou na comissão de Planejamento Urbano, Meio Ambiente, Habitação, Legislação Participativa e Assuntos Metropolitanos depois que a vereadora Natália Bonavides (PT) pediu vistas do processo. Os vereadores desta comissão voltam a se reunir na próxima quarta-feira (6) para votar o polêmico projeto.
Um levantamento realizado pela agência Saiba Mais mostra que, desde o ano passado, casas legislativas de pelo menos 15 capitais aumentaram a ofensiva contra pichadores e grafiteiros, encaminhando ou aprovando projetos semelhantes. Há casos, como na vizinha João Pessoa ou em Belém, que a multa cobrada pode chegar a R$ 50 mil.
O inciso III do artigo 1º do Projeto reconhece o grafite como manifestação cultural e artística, mas assim como a maioria desses PLs pelo país, a proposta de Felipe Alves equipara desenhos e escritos, independente de seu teor e potenciais artísticos, ao que chama de conspurcações (tornar sujo, macular e desonrar, segundo o dicionário), quando não há consentimento do proprietário ou autorização dos órgãos competentes. O parágrafo único do artigo 3 faz a ressalva:
– Ficam excluídos desta lei todos os grafites realizados com o objetivo de valorizar o patrimônio público mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de um bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das normas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico”.
É importante destacar que a ressalva presente no PL 51/17 foi copiada do artigo 65 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1998) que prevê pena de 3 meses a 1 ano de prisão para quem pichar ou desenhar grafites sem autorização.
Se a proposta de Felipe Alves for aprovada pelos vereadores da Casa, a multa prevista em caso de desobediência é de R$ 5 mil, podendo chegar a R$ 10 mil, havendo reincidência. O valor é tão desproporcional que, a título de comparação, o Departamento Nacional de Trânsito estipula multa de R$ 2.934,87 para infrações gravíssimas, como motoristas flagrados dirigindo sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.

Na prática, é a criminalização do artista de rua, historicamente marginalizado e perseguido pelo Estado. Apesar do enfrentamento à poluição visual, proteção e do zelo do bem público serem citados como justificativa para a elaboração do PL, nenhum trecho do documento faz referência, por exemplo, às propagandas ou publicidades irregulares espalhadas pela cidade.
Poluição visual: o projeto de lei não trata da publicidade irregular.
Autor da proposta, o vereador Felipe Alves discorda que o projeto faça parte de uma ofensiva contra grafiteiros e pichadores.
– Discordo plenamente. Se houvesse uma ofensiva contra grafiteiros nós não teríamos colocado no projeto essa ressalva de que o grafite é arte e deve ser, ao invés de combatido, estimulado. Na verdade o que existe é uma preocupação com a questão visual da cidade e também em coibir atos que, ao nosso ver, prejudicam toda a coletividade
Educador, músico e grafiteiro, Miguel Carcará reclama que os artistas da cidade não foram chamados para conversar sobre o projeto e vê com preocupação a criação de uma lei que, segundo ele, já nasce discriminando jovens artistas.
– O objetivo desse projeto é reprimir nossa arte e nossa cultura. Se você andar pelas ruas de Natal vai ver que existe mais publicidade do que arte. É um projeto que favorece uma classe empresarial, que se utiliza das telas urbanas, e ao mesmo tempo reprime a nossa liberdade de expressão.

Termo de Cooperação poderá livrar multa

O artigo 4o do PL51/17 afirma que a pichação constitui infração administrativa passível de multa no valor de R$ 5 mil, independente das sanções penais cabíveis e da obrigação de indenizar os danos morais e materiais, além das despesas de restauração do bem pichado. E determina a aplicação em dobro da pena em caso de reincidência.
No entanto, até o vencimento da multa, o responsável pela pichação ou grafites não autorizados pode firmar um Termo de Compromisso de Reparação da Paisagem Urbana ficando, assim, livre da penalidade.
Após o vencimento da multa, e caso não haja acordo, o débito será inscrito em dívida ativa e o responsável fichado no Cadastro Informativo Municipal (Cadin). Pelo texto da proposta, a prefeitura de Natal é quem vai executar e fiscalizar o projeto. O Município também terá que manter um cadastro com todos os infratores contendo dados pessoais com nome, números da Identidade e CPF, nome dos pais, além do endereço residencial e do trabalho. A regulamentação da lei deve ser feita, pela Prefeitura, em até 90 dias após aprovação do Projeto.

Cidade "Linda"?


Sob o título de “Programa de Combate à Pichações e Depredações no Município de Natal”, o projeto de lei do vereador Felipe Alves é, na verdade, a versão potiguar de uma das ações do programa Cidade Linda, executado com bastante publicidade e polêmica pelo prefeito de São Paulo João Dória Júnior (PSDB).
Em fevereiro, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou projeto parecido em que também criminaliza o artista de rua, com ressalva idêntica de liberar grafites desde que autorizados pelo proprietário do imóvel ou pelo poder público. A multa, em caso de descumprimento, é de R$ 5 mil, podendo chegar a R$ 10 mil em caso de reincidência.
Depois que João Dória deu publicidade à perseguição de sua gestão a pichadores e grafiteiros, inclusive apagando pessoalmente grafites presentes na paisagem paulistana há vários anos, uma série de projetos de lei semelhantes foram elaborados por vereadores em capitais e municípios do interior do país.
Somente em 2017, além de Natal, as cidades de Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, Belo Horizonte, São Paulo, Salvador, Recife, João Pessoa, Fortaleza, São Luís, Teresina e Belém já aprovaram ou estão na iminência de votar projetos com o mesmo conteúdo.
No ano passado, a Câmara Municipal de Vitória autorizou a prefeitura local a punir com multa de R$ 9 mil quem for pego pichando ou grafitando sem autorização. No Rio de Janeiro, o projeto elaborado em 2016 pelo vereador Carlos Bolsonaro (PSC) foi rejeitado num primeiro momento, mas voltou a tramitar na Casa sob o título de “Pichação Zero”. De acordo com o PL carioca, o valor da multa ficaria a cargo do próprio município e seria cobrada de forma progressiva em caso de reincidência.
Em Natal, o vereador Felipe Alves admite que o projeto de São Paulo serviu de modelo, mas faz a ressalva de que, além de pichadores e grafiteiros sem autorização, o projeto quer punir quem depreda o patrimônio público.

O conteúdo do projeto é discriminatório, diz Natália

Com votação na comissão de Planejamento Urbano, Meio Ambiente, Habitação, Legislação Participativa e Assuntos Metropolitanos marcada para a próxima quarta-feira, 6 de setembro, o PL 51/17 será apreciado pelos vereadores Sandro Pimentel (PSOL), Natália Bonavides (PT), Nina Souza (PEN), Sueldo Martins (PHS) e Dickson Nasser Jr. (PSDB). A relatora é a vereadora Nina Souza, que já havia emitido parecer favorável antes de Bonavides suspender a tramitação para analisar melhor a proposta.
O parecer jurídico emitido pelo mandato da vereadora petista classificou como “discriminatória” a proposta de Felipe Alves. Segundo ela, o projeto utiliza critérios subjetivos para aplicar a lei. “O fator decisivo para a diferenciação entre arte e “conspurcação”, segundo o projeto, se limita à existência de consentimento ou autorização. Trata-se de critério ausente de razoabilidade, limitado a subjetividades. Temos, portanto, uma situação na qual a aplicação da lei se encontra completamente submetida aos caprichos e idiossincrasias do gestor, visto que lhe foi dada a prerrogativa de autorizar o que é ou deixa de ser arte”, aponta.
Bonavides também vê contradição no texto do projeto de lei na medida em que busca diferenciar arte de vandalismo, embora considere lícito apenas o grafite autorizado. “Ao passo que outras formas de expressão artística, ainda que eventualmente mais arrojadas ou correspondentes com o que pode ser considerado arte, passam a ser consideradas ilícitas tão somente em razão da ausência de autorização. O projeto em análise contém conteúdo claramente discriminatório”, diz.

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