Medidas podem levar a mais acidentes, acreditam especialistas / Agência Brasil
Pelo projeto, infratores só terão carteira suspensa quando atingirem 40 pontos em multas; hoje limite é de 20
O presidente Jair Bolsonaro entregou nesta terça-feira (4) ao Congresso Nacional projeto de lei que estende a validade da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) de cinco para dez anos e determina o aumento do limite de pontos que levam à suspensão da carteira de 20 para 40. Organizações que atuam com segurança viária avaliam que o projeto é um prêmio para os maus motoristas e que esse tipo de política, associada à retirada de radares e lombadas eletrônicas em avenidas e rodovias, incentiva o crime no trânsito.
“É uma irresponsabilidade. Os países mais avançados em termos de segurança viária estão fazendo o caminho inverso. Estão reduzindo a permissividade, tornando os processos mais rígidos. E não aumentando o quanto você pode desrespeitar as regras de trânsito. Contradiz todas as políticas mundiais de segurança no trânsito e o próprio Plano Nacional de Mobilidade Urbana”, criticou Aline Cavalcante, diretora da Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade) e conselheira da União dos Ciclistas do Brasil.
Países considerados exemplares em segurança viária adotam sistemas rígidos de pontos no documento de habilitação. Ultrapassar o limite leva à cassação do direito de dirigir na Itália e na Alemanha, por exemplo. No primeiro, o motorista tem 20 pontos que vão sendo descontados conforme o cometimento de infrações. Se o condutor passar dois anos sem ser multado, ganha mais dois pontos. Outros países usam diferentes limites de pontos. Na Austrália são 12 pontos. A Dinamarca tem limite de três pontos, a Alemanha, oito e o Canadá, 15. Está em discussão no Paraguai a adoção de um sistema de 20 pontos.
As mudanças na CNH propostas por Bolsonaro, determinam que os motoristas só terão suspenso o direito de dirigir ao cometer infrações equivalentes a 40 pontos. Além dessa mudança, o governo tem defendido o fim da fiscalização eletrônica de velocidade e a desativação dos radares em rodovias federais. “São políticas públicas que incentivam o crime no trânsito. As mortes no trânsito já são consideradas uma epidemia pela ONU. Medidas assim legitimam a violência e a impunidade. Já existem muitos mecanismos para garantir a impunidade de um motorista que comete uma infração. Flexibilizar isso é uma visão de quem não respeita a vida”, criticou Aline.
A diretora da Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo (Cidadeapé) Ana Carolina Nunes avalia que as mudanças na CNH podem servir de incentivo para que motoristas cuidadosos deixem de zelar pela segurança no trânsito. “Aumentar o limite de pontos é premiar os maus motoristas. Passa uma mensagem: ‘Não precisa se preocupar que a gente limpa a barra’. A maior parte dos motoristas não comete grande número de infrações. As multas estão concentradas em um pequeno número de motoristas. Essa proposta beneficia uma parcela mínima da população e coloca em risco todos os outros, que andam, pedalam ou dirigem nas vias públicas”, argumentou.
Dados do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV) indicam que entre 15% e 18% dos 60 milhões de condutores brasileiros podem ser considerados “infratores contumazes”, aqueles que cometem mais de duas infrações por ano. Na capital paulista, onde o mito da “indústria da multa” retorna a cada eleição, menos de 30% dos motoristas são responsáveis por todas as multas aplicadas na cidade. “Apesar de aparente benefício a toda sociedade, esta medida irá beneficiar somente os condutores infratores (menos de 5% da população brasileira), ou seja, justamente os que colocam em risco a vida dos demais 95% da população”, disse o ONSV. O Observatório já se manifestou contra a retirada de radares.
O governo Bolsonaro justifica que as mudanças na CNH visam a beneficiar motoristas profissionais, que acumulam muito mais horas de rodagem em ruas e avenidas do que os demais condutores. No entanto, esses já são beneficiados pela possibilidade de realizar um curso preventivo de reciclagem quando atingem 14 pontos na CNH. Ao fazer o curso, os pontos são zerados. Com isso, os profissionais já dispõem de 34 pontos anuais. O Observatório defende que essa condição seja ampliada para todos os motoristas, mas que o número de pontos permaneça em 20. O presidente quer que esse curso seja autorizado quando motoristas profissionais chegarem a 30 pontos.
Para Ana, o governo devia se preocupar em ampliar a fiscalização, como forma de melhorar a segurança no trânsito. “Não precisa nem aumentar os pontos, fazer mudanças na CNH, basta melhorar a fiscalização. O cenário real é de impunidade. Existem dezenas de infrações que não são monitoradas, como conversões sem priorizar o pedestre ou não manter distância segura de ciclistas. E que provocam muitos acidentes fatais. Mas o governo não se importa em tornar o trânsito mais seguro”, afirmou.
Extinção dos simuladores
Entre as mudanças na CNH, o governo Bolsonaro propôs a retirada dos simuladores das aulas dos Centros de Formação de Condutores (CFC). A justificativa é de que estes são ineficientes e elevam o custo da formação. “Engana-se quem acredita que a retirada do simulador irá reduzir o preço para contratação da habilitação, uma vez que o impacto é praticamente nulo, havendo sim oportunidade de redução e aumento da eficácia com a introdução de aulas teóricas em EAD, eliminação de taxas administrativas, etc.”, defendeu o Observatório.
A entidade ressalta que o problema com os simuladores se dá pela revogação da resolução 726, do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que determinava uma série de atualizações nos sistemas para adequá-los às exigências do aprendizado. “Na formação de condutores, os simuladores contribuem avaliação do comportamento humano do condutor (influência de álcool, drogas, sono e fadiga na direção), aperfeiçoamento de motoristas habilitados e profissionais, treinamento para condução de veículos específicos, simulação da realidade aplicada à educação para o trânsito”, exemplifica.
O OSNV não se opõe à extensão da validade da CNH de 5 para 10 anos, por considerar que a ação é meramente burocrática. Faz apenas uma ressalva no caso dos condutores profissionais, que deveriam passar por exames clínicos e psicológicos nesse prazo. “Avaliando no ponto de vista da renovação atual ser meramente cartorial, ampliar para 10 anos é uma forma de desburocratizar o processo reduzindo tempo e custos ao cidadão. (Existem) riscos por não acompanhamento das condições de saúde do condutor, especialmente os que exercem atividades remuneradas”, pondera a organização. A organização defende a renovação a cada 5 anos para todas as categorias, a partir de 60 anos, e a cada 2 anos a partir de 75 anos.
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