quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Cuidado >> Governo peruano propõe parque nos Andes para proteger a nascente do rio Amazonas

Guardadores das águas, homens da comunidade cuja missão espiritual é proteger as muitas fontes alimentadas pelos glaciares da região de Arequipa - Foto: Roberto Linsker

No vale do Colca peruano, a mineração e o rápido e anormal degelo dos glaciares andinos podem macular o berço onde brotam as águas do maior rio do mundo

Vale do colca, província de Arequipa, lado sudoeste do território peruano. Ali, aos pés do adormecido Misti, vulcão com quase 6 mil metros de altitude, pequenos veios d’água brotam do chão provenientes do degelo das geleiras da cordilheira andina, facilmente avistadas ao longe. Poucas centenas de metros depois, se transformam em generosos regatos. Eles dão origem ao maior rio do planeta, o Amazonas, a 5 180 metros acima do nível do mar.

Na região – de longos vales abismais a formar cânions com mais de 3,5 mil metros de altura, onde reinam os condores –, vivem populações de descendentes de povos pré-incas. Para eles, toda essa água limpa e abundante é uma dádiva. A maioria dessas pessoas sobrevive da agricultura familiar de batatas, milho e hortaliças. Também pastoreiam alpacas e lhamas, no alto das montanhas, além de ovelhas e vacas na planície à beira do rio Colca. Em agradecimento ao líquido precioso, frequentemente fazem oferendas a Pachamama, divindade máxima dos Andes peruanos, relacionada à terra e à fertilidade.

Mas há na região uma forte e corrosiva atividade de mineração de ouro e prata. Eis aí um dos perigos a comprometer a integridade da cabeceira do rio Amazonas e a qualidade e a quantidade das águas abençoadas dos nativos. A ávida procura por metais preciosos, feita sem controle ambiental, pode causar o assoreamento e a contaminação dos cursos d’água. Estradas vêm sendo abertas para escoar a produção.

Outra ameaça, ainda mais assustadora, é o rápido e anormal degelo dos glaciares peruanos. O fenômeno é estudado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). Eles creditam o derretimento das geleiras como consequência direta das mudanças climáticas em andamento nas últimas décadas.

Tal cenário deixa no ar uma pergunta crucial: quais seriam os efeitos decorrentes de um desastre ecológico anunciado na região do vale do Colca para a integridade das águas do rio que abastece boa parte do território brasileiro, irriga e mantém viva e em equilíbrio a maior floresta tropical do mundo?

Áreas de proteção

Ainda não existem respostas concretas. O Ministério do Meio Ambiente do Peru, contudo, já considera a possibilidade de criação de uma reserva de proteção ambiental na região onde nasce o Amazonas, a fim de afastar os riscos da mineração desenfreada. A ideia foi sugerida ao governo peruano pela organização não governamental brasileira Fundação Amazonas Sustentável (FAS). Prontamente recebeu sinal positivo das autoridades do país vizinho. “Em uma primeira etapa a intenção é demarcar e proteger 15 mil hectares ao redor das vertentes formadoras do Amazonas. Mais tarde esse território deverá ser expandido”, diz o superintendente da FAS, Virgílio Viana.

Uma zona reservada acaba de ser estabelecida para proteger o nascedouro do Amazonas. Ela resguardará o lugar até que uma reserva ambiental seja implantada. A área de proteção a ser criada protege as águas do rio Apurimac, nas proximidades do nevado Mismi, hoje considerado o principal formador do Amazonas. No entanto, nem sempre o Apurimac foi tido como a fonte primária do extenso rio que atravessa o Norte do Brasil. As dúvidas sobre o local exato onde o Amazonas nasce são antigas. Perde-se a conta de quantas expedições foram organizadas em direção à região de Arequipa com essa finalidade. Até porque não existe apenas uma única nascente que dá origem e torna caudaloso o Amazonas. Há, sim, uma rede de pequenos córregos tributários, todos eles em território peruano.

Um rio com muitas nascentes

A polêmica sobre a nascente do Amazonas se estende por séculos, desde os tempos da colonização europeia no continente sul-americano. Em 1691, Samuel Fritz, um missionário jesuíta checo a serviço da Espanha, mapeou pela primeira vez o rio até sua foz. Fritz assinalou a nascente do rio Marañón, ao norte do Peru, como sua origem.

Oficialmente, o Marañón permaneceu até o século 20 como sendo a principal nascente do Amazonas. Somente em 1971 uma expedição organizada pela National Geographic Society, sob a liderança do capitão aposentado da Marinha dos Estados Unidos Loren McIntyre, determinou o Apurimac, localizado nas proximidades do nevado Mismi, como o principal rio que dá vida ao Amazonas.

Loren McIntyre descobriu que o Apurimac é alimentado por uma lagoa de poucos metros de diâmetro de águas límpidas que descem suaves dos Andes, à beira do Mismi. O charco desbravado pela equipe da National Geographic Society ficou conhecido, desde então, como laguna McIntyre. É considerada a fonte mais distante do rio Amazonas em relação à sua foz.

McIntyre não logrou tal proeza ao acaso. Morto em 2003 aos 86 anos, era um pioneiro do fotojornalismo e um desbravador nato de novos rincões na América do Sul. Assim, acabou se apaixonando pelo Brasil, especialmente pela Amazônia e suas populações nativas. Aprendeu a falar português fluentemente, fez inúmeras incursões à floresta tropical brasileira, conheceu e registrou em imagens tribos indígenas – publicadas em diversas revistas, inclusive National Geographic – e deixou muitos amigos.

Depois de McIntyre, a mais recente empreitada em busca de onde o Amazonas começa foi realizada em maio de 2007 por brasileiros e peruanos. Conhecida como Expedição Científica Brasileira e Peruana à Nascente do Amazonas, teve a participação de pesquisadores brasileiros do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Agência Nacional de Águas (ANA), além de cientistas do Instituto Geográfico Nacional (IGN) do Peru e de um grupo de jornalistas.

A expedição reiterou os apontamentos da National Geographic Society. Oficialmente, o Apurimac e o Ene, o Tambo, o Ucayali (no lado peruano), o Solimões e o Amazonas (em terras brasileiras) formam um só rio, com 6 991 quilômetros. Um estudo do Inpe comparando a extensão do Amazonas e do Nilo, no Egito, confirmou: o rio que nasce no Peru, corre por todo o Norte do Brasil e deságua no Atlântico é mesmo o maior curso d’água do planeta.

A ameaça da mudança climática

Se é possível enxotar definitivamente o fantasma da mineração com a criação de uma área de conservação ambiental para o berço do Amazonas, o espectro do derretimento dos glaciares parece impossível de ser afastado. Estudos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul dão conta de que da Patagônia à Venezuela, a maior parte das geleiras dos Andes está derretendo rapidamente nas últimas décadas. Pior: os cientistas consideram o fenômeno uma catástrofe irremediável que pode exterminar para sempre esses milenares reservatórios naturais de água doce.

“A maioria das geleiras dos trópicos está no Peru, 71% do total, basicamente na cordilheira Branca. Aproximadamente 200 quilômetros quadrados do gelo dessas montanhas foram perdidos entre 1980 e 2006. É um decréscimo ao redor de 26% desde 1980”, revela o glaciologista Jefferson Cardia Simões, professor de geografia polar e glaciologia da UFRS. “Interessante notar que as geleiras peruanas avançavam até 1870. Depois começaram a definhar. Nos últimos 40 anos a retração aumentou substancialmente.”

A velocidade com a qual os glaciares peruanos estão encolhendo foi detectada por Simões e sua equipe. “Existem estudos que chamamos de balanço de massa. Eles determinam quanto uma geleira perde ou ganha de gelo por ano. Nos Andes peruanos essa perda já era 0,2 metro em equivalente de água por ano, entre 1964 e 1975. Atualmente, está em cerca de 0,76 metro.”

As consequências do déficit de gelo trará problemas imediatos e em um futuro próximo: “Em uma primeira fase poderá haver deslizamentos e enchentes. Em seguida, a diminuição considerável da disponibilidade dos recursos hídricos será inevitável”. Simões lembra que os danos à economia do Peru serão evidentes. “O rápido degelo deve afetar os recursos energéticos, que em grande parte são de origem hídrica e fortemente controlados pelas águas do degelo. A agropecuária e o abastecimento de água também sofrerão prejuízos.”

Hoje se sabe que o rápido derretimento dos glaciares andinos é resultado das ações humanas. “Certamente o fenômeno é atribuído às mudanças climáticas, inclusive o aquecimento atmosférico da região. A grande certeza é que o processo vem se acelerando nos últimos 40 anos. Não há como revertê-lo. Evidentemente, se a atmosfera terrestre esfriar, as geleiras dos Andes, assim como as de outras regiões do continente sul-americano, podem se expandir”, explica o professor Jefferson Simões.

No entanto, o glaciologista da UFRS alerta: “É bom lembrar que todos os cenários previstos pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) mostram que teremos um aquecimento global de, no mínimo, 2 °C até 2100, independentemente de reduzirmos as emissões de gases de efeito estufa”. O que é possível fazer de imediato, de acordo com Simões, é aumentar o poder de resiliência das populações direta e indiretamente afetadas pelo degelo dos glaciares.

Para a bacia do rio Amazonas, não há conhecimento concreto sobre os efeitos do desvanecimento prematuro dos Andes. Existem apenas especulações em torno do que possa acontecer com o rio, seus afluentes e ecossistemas, visto que as águas provenientes dos glaciares andinos levam à região amazônica uma boa quantidade de sedimentos que são verdadeiros fertilizantes de vida. “A porção oeste da Amazônia está muito próxima da massa de gelo dos Andes. Esses sedimentos irão diminuir consideravelmente”, avalia Simões. Em contrapartida “é a bacia amazônica quem fornece água para as geleiras de grande parte da cordilheira boliviana e peruana, na forma de neve, e não o contrário. Então, todo o ciclo climatológico fica comprometido”, conclui.

Não bastassem as ameaças ao Amazonas, recentemente cogitou-se levar água do rio para outras regiões brasileiras, com a intenção de abrandar a crise hídrica que assola vários estados. Para viabilizar esse abastecimento, disse o representante do Serviço Geológico do Brasil, Marco Antonio Oliveira, seria preciso tocar grandes obras de engenharia. “É um assunto polêmico. Mas temos que debater esse tema porque a bacia amazônica concentra mais de 90% da água doce do Brasil.”

A sugestão do Serviço Geológico do Brasil caiu como uma bomba entre os ambientalistas. O arquiteto e mestre em engenharia civil e urbana Renato Tagnin, autor do livro Administrando a Água Como Se Fosse Importante, com Ladislau Dowbor, dispara contra a insólita ideia: “Nossa crise hídrica não é causada pela falta de obras, mas pelo excesso delas”.

A saída para eliminar o risco iminente de falta de água, segundo Tagnin, não é erguer mais obras faraônicas, mas preservar nascentes, reflorestar, recriar corredores ecológicos. “A biodiversidade tem bilhões de organismos trabalhando para manter a vida em simbiose. A humanidade precisa dar um fim na sua própria arrogância e aprender com os mais velhos. No caso, a natureza.”

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