segunda-feira, 6 de março de 2017

EDUCAÇÃO E CIDADANIA >> Educadora fala sobre a ausência da história dos negros brasileiros no currículo escolar

A educadora Priscila Dias participa do filme Flores de Baobá - Divulgação/Flores de Baobá
Para Priscila Dias, que participa do documentário Flores de Baobá,  o "silêncio" é limitador
A rotina de aulas em duas escolas da rede pública de ensino da educadora Priscila Dias é compartilhada com uma profunda reflexão sobre os efeitos e desafios da educação na vida dos alunos. 
Priscila dá aulas de História na Escola Estadual Professor Messias Freire e também na Escola Municipal de Ensino Fundamental Professor Levy de Azevedo. A escola estadual fica no Jardim Leônidas Moreira e a municipal no jardim Vale das Virtudes, dois bairros da região do Campo Limpo, na zona Sul de São Paulo.
Ela é uma das duas personagens principais do documentário Flores de Baobá, dirigido pela cineasta Gabriela Aurazo, sobre o impacto da desigualdade no acesso à educação como um problema global nas comunidades negras. O filme, em fase de produção, mostra a realidade da periferia de São Paulo (Brasil) e da cidade da Filadélfia (EUA).
O filme é independente e conta com uma campanha de financiamento colaborativo para ser concluído. A professora Priscila conversou com o R7 sobre a sua experiência como educadora e os obstáculos enfrentados pelos alunos negros nas escolas públicas.
R7: Como decidiu ser educadora?
Priscila Dias: Decidi ser educadora pela minha experiência, que eu chamo de experiência do silêncio. Eu estudei numa escola de elite, ganhei uma bolsa nessa escola. Desde criança, eu sofri por parte dessas crianças muitas ofensas raciais e ofensas culturais, e o que me chamou atenção, quando me tornei adulta, foi o silêncio acerca da história negra, então eu fui crescendo neste silêncio em relação a minha própria história. Foi por isso que decidi ser educadora, para quebrar esses silêncios, essa doenças sociais, o racismo, o machismo, então eu decidi ser educadora por conta do silêncio frente a essas questões, especialmente na educação.

R7: Quais as maiores dificuldades enfrentadas pelos educadores que atuam nas periferias brasileiras?

Priscila Dias: Eu não tenho conhecimento de vivência de outras periferias brasileiras, mas eu acho que falando de São Paulo, especificamente da minha realidade, a maior dificuldade hoje é a infraestrutura, eu estou dando aula num colégio onde não tem giz, não tem diário, o diário está em falta, as maiores dificuldades eu acredito que sejam estruturais mesmo, a questão física das escolas. Mas também, eu acho que o abandono físico do espaço da escola é um abandono que fica atrás de outros abandonos. Uma outra dificuldade, por exemplo, é a questão dos adolescentes estarem passando de ano sem aprender ler e escrever. Temos alunos que não foram alfabetizados em todos os anos, temos no quinto ano e temos do terceiro ano do ensino médio. Essa é nossa maior dificuldade enquanto professor especialista.

R7: A valorização do estudo aumentou nas periferias brasileiras? As famílias estão encarando a educação das crianças como prioridade?
Priscila Dias: Eu não vejo uma maior valorização do estudo, acho que essa falta de valorização é porque a escola não cumpre a função de mobilidade social. Conseguir estudar e essa educação te trazer uma mobilidade social, famílias hoje na periferia sabem que isso é uma mentira, sabem que a escola não traz mudanças, pelo menos não na escola onde eu estudo. Inclusive, há uma onda crescente da comunidade, dos pais, dos filhos em agredirem o professor, eu não coloco isso como um todo, mas é uma realidade em todas as escolas.

R7: Como se dá a construção da imagem do negro no sistema de ensino brasileiro?
Priscila Dias: Acho que essa pergunta pode ser entendida de duas maneiras. Vou falar primeiro em relação a construção da imagem do aluno negro. A construção que se dá imagem do aluno negro é um aluno que dá trabalho, é um aluno disperso, que não conseguiu se alfabetizar e tudo isso vira em torno da capacidade do aluno negro. Em conselho escolar, falam que a família desse aluno é desestruturada, sem nunca terem conhecido esse aluno, tomando como parte da desestruturação que falam que as famílias têm. Geralmente é o aluno que repete de ano, que leva convocação e suspensão. A imagem do aluno negra é pautada na ideia inicial da incapacidade do aluno negro ou do aluno periférico de aprendizado. A construção está pautada em cima de que os alunos negros e periféricos não tem capacidade acadêmica crítica.
R7: E a imagem do negro no ensino?
Priscila Dias: Já como é feita a construção da imagem do negro no ensino, está pautada em uma currículo extremamente limitador do papel do negro na sociedade brasileira e no papel da África no mundo. Quando falamos do currículo de História especificamente, nós temos um século XVI, quando os africanos vão aparecer na História já como escravos. E em 1888, libertam-se os escravos africanos e deixam de existir na História. Ou seja, o negro vai entrar na História como escravo e vai sair da História quando se torna liberto.
A gente tem a Primeira Guerra Mundial, quando a História não fala de um continente negro, de soldados negros africanos. Temos a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, a Ditadura Militar, temos a Redemocratização e o negro sumiu pós 1888 da História do Brasil. A construção de alguém naturalmente escravo, de uma passividade, de uma África invadida, submissa, subnutrida, a gente não tem conhecido do reino do Mali, por exemplo. A iconografia do negro na História do Brasil é essa, de escravos passivos e subalternos, a África como uma coisa só e é justamente nisso que precisamos readequar essa compreensão do negro. Porque dizer para um aluno que ele é descendente de escravos gera um sentimento que é totalmente diferente de eu dizer para um aluno, que ele foi descendente de reis e rainhas que foram escravizados. Essa construção do negro como passivo, faz com que o aluno negro tenha muita vergonha de si, muito vergonha da sua cor, do seu fenótipo...Muito comum ouvir dizer: o negro é racista! E, sim, somos criados odiando a textura do cabelo, o contorno do nariz, a espessura dos lábios...

R7: uma educação melhor com mais investimento por parte do estado pode ajudar a melhorar as chances de mobilidade social nas periferias?

Priscila Dias: Eu acredito sim que um maior investimento pode finalizar em mobilidade social, mas não só isso. A educação hoje se volta para o mercado de trabalho, mas é preciso questionar que mercado é esse? É um mercado em que se ganha de 800 a 1500 reais por mês. Esse é o mercado de trabalho para o qual a nossa escola educa nossas crianças. Então, eu acredito sim que um maior investimento venha a melhorar a mobilidade social, mas é importante que a educação reveja o seu propósito, porque se for com maior investimento e mesmo assim a escola não se propor a essa função social, não haverá mobilidade. Acredito que a mobilidade viria de uma outra organização, uma outra compreensão do papel da escola na sociedade.
R7: como foi participar do documentário Flores de Baobá?
Priscila Dias: Participar do Flores tem sido incrível, principalmente dentro dessa perspectiva que a realidade brasileira dialogue com a realidade negra de países de primeiro mundo, como os Estados Unidos. Ter essa outra visão de um país do primeiro mundo em relação a questão negra, me abriu os olhos frente aos lugares que receberam a escravização negra nas Américas e, como é importantíssimo a gente pensar esse Brasil, essa América Latina, a partir da colonização, a partir do colonizado. Então essa proposta de olhar para o outro lado, a proposta da descolonização, não só do saber, mas da metodologia e da pedagogia tem sido uma experiência incrível. Repensar essa pedagogia e essa metodologia junto com o Flores de Baobá. A participação no filme, me possibilita essa nova visão da colonização nas Américas como um todo.

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