O candidato da oposição, Aécio
Neves (PSDB), também se apressou a reafirmar “o PT quer censurar a imprensa”.
Neste momento, quanto mais confuso
for o debate sobre o tema, menos resultados ele produzirá. Assim, alguns
veículos empenham-se em embaralhar as informações de forma sofisticada;
outros omitem do público informações relevantes sobre o tema; outros,
ainda, divulgam o dito pelo não dito. O esforço é um só: manter
inalterada a atual situação de concentração econômica e de ausência de
diversidade e pluralidade na mídia brasileira.
Tendo em vista esta ostensiva
operação para interditar um debate direto e transparente sobre a
regulação da mídia (ação corrente que, essa sim, caracteriza prática de
censura), vamos aos fatos, numa tentativa de desfazer o labirinto
construído em torno do assunto.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar
que a radiodifusão é, assim como a energia, o transporte e a saúde, um
serviço público que, para ser prestado com base no interesse público,
requer regras para o seu funcionamento. No caso das emissoras de rádio e
TV, a existência dessas regras se mostra fundamental em função do
impacto social que têm as ações dos meios de comunicação de massa,
espaço central para a veiculação de informações, difusão de culturas,
formação de valores e da opinião pública.
Lembram os teóricos que a necessidade
ou não de regulação de qualquer setor e a intensidade e o formato dessa
regulação estão condicionadas justamente ao poder potencial que tal
setor tem para mudar as preferências da sociedade e dos governantes.
Assim, quanto maior o poder de um determinado setor e o desequilíbrio
democrático provocado, maiores a necessidade e a intensidade de
regulação por parte do Estado.
Portanto, à medida que, ao longo da
história, crescem a presença e influência dos meios de comunicação de
massa sobre a sociedade, aumenta a necessidade de o Estado regular este
poder. Não para definir o que as emissoras podem ou não podem dizer, mas
para garantir condições mínimas de operação do serviço de forma a
manter o interesse público – e não o lucro das empresas – em primeiro
lugar.
Vale lembrar também que, além de um
serviço público, a comunicação eletrônica representa um setor econômico
dos mais importantes do país. Assim como outros, precisa do
estabelecimento de regras econômicas para o seu funcionamento, de modo a
coibir a formação de oligopólios ou de um monopólio num setor
estratégico para qualquer nação.
No entanto, mais de vinte e cinco
anos após sua promulgação, nenhum artigo de seu capítulo V, que trata da
Comunicação Social, foi regulamentado, deixando um vazio regulatório no
setor e permitindo a consolidação de situações que contrariam os
princípios ali estabelecidos.
Os efeitos da não regulamentação constitucional são evidentes:
-
O artigo 220, por exemplo, define que não pode haver monopólio ou oligopólio na comunicação social eletrônica. Hoje, no entanto, uma única emissora controla cerca de 70% do mercado de TV aberta.
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O artigo 221 define que a produção regional e independente devem ser estimuladas. No entanto, 98% de toda produção de TV no país é feita no eixo Rio-São Paulo pelas próprias emissoras de radiodifusão, e não por produtoras independentes.
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Já o artigo 223 define que o sistema de comunicação no país deve respeitar a complementaridade entre os setores de comunicação pública, privada e estatal. No entanto, a imensa maioria do espectro de radiodifusão é ocupada por canais privados com fins lucrativos. Ao mesmo tempo, as 5.000 rádios comunitárias autorizadas no país são proibidas de operar com potência superior a 25 watts, enquanto uma única rádio comercial privada chega a operar em potências superiores a 400.000 watts. Uma conta simples revela o evidente desequilíbrio entre os setores.
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Por fim, o artigo 54 determina que deputados e senadores não podem ser donos de concessionárias de serviço público. No entanto, a família Sarney, os senadores Fernando Collor, Agripino Maia e Edson Lobão Filho, entre tantos outros parlamentares, controlam inúmeros canais em seus estados. Sem uma lei que regulamente tal artigo, ele – como os demais da Constituição – torna-se letra morta e o poder político segue promiscuamente ligado ao poder midiático.
Regular os meios de comunicação
de massa neste sentido está longe, portanto, de estabelecer práticas de
censura da mídia. Trata-se de uma exigência constitucional de definir
regras concretas para o funcionamento destes veículos no sentido de
atender aos objetivos definidos pela sociedade em sua carta maior.
Regular a radiodifusão não é coisa de comunista
Outro mantra entoado pelos oponentes
da regulação da mídia é que esta seria uma tentativa de acabar com a
liberdade de imprensa e transformar o Brasil num país comunista. Nada
mais desinformado.
O Estados Unidos, por exemplo, país
que está longe de ter aspirações comunistas, já estabeleceu, há algumas
décadas, que donos de empresas que publicam jornais e revistas não podem
controlar também canais de rádio e TV. Os americanos entendem que
tamanha concentração de poder em termos de difusão de informação é
prejudicial para a democracia liberal e a livre concorrência de mercado,
que tanto defendem.
Assim, lá os donos do The New York Times
não podem ser os mesmos donos de uma emissora de TV em Nova York,
porque a regulação americana coloca limites à propriedade cruzada dos
meios de comunicação e proíbe a formação de oligopólios. Da mesma forma,
uma empresa não pode ultrapassar um percentual máximo de audiência na
mesma localidade, porque seu impacto seria demasiado grande em termos de
poder político. Estas são apenas duas das regras definidas pelo órgão
regulador responsável pelo setor, entre tantas outras que os Estados
Unidos, berço do liberalismo, decidiu adotar em relação à mídia.
Já por aqui, apesar de muitos
atribuírem o êxito das Organizações Globo exclusivamente à sua
competência em se posicionar no mercado, é preciso lembrar que parte do
poder alcançado pelo maior grupo de rádio e televisão do Brasil também é
resultado de uma ação histórica, ao longo das décadas, do que se pode
chamar de abuso de poder de mercado. Abuso que se revela quando uma
única emissora possui cerca de 40% da audiência da TV aberta e concentra
mais de 70% do mercado publicitário – além de controlar canais de TV
por assinatura, jornais, revistas, editoras, gravadoras e produtoras –,
desenhando um cenário de evidente monopólio.
A necessária regulação de conteúdo
Um aspecto interessante da recente
declaração da presidenta Dilma sobre a necessidade de regulação dos
meios de comunicação de massa foi sua incisiva exceção manifestada à
regulação de conteúdo. A posição da presidenta não é novidade; Dilma já
disse inúmeras vezes que prefere o barulho das democracias ao silêncio
das ditaduras. Porém, ao se permitir debater a regulação econômica da
mídia e voltar a negar a regulação de conteúdo, Dilma contribui para a
confusão que os grupos de comunicação tanto gostam de provocar sobre o
tema.
É natural que a Dilma tente se
esquivar das armadilhas da imprensa, no sentido de desmontar as versões
de que se trata de um plano maquiavélico para controlar o que os meios
podem ou não dizer. Sua declaração é uma vacina contra a velha
estratégia da mídia de confundir a garantia da liberdade de expressão
com a ausência absoluta de regulação – ou, ainda, de tratar como uma
coisa só censura e regulação de conteúdo. Porém, tanto a estratégia de
Dilma em retirar o assunto “conteúdo” da pauta quanto o esforço dos
meios em classificar rasteiramente regulação de conteúdo como censura só
confundem e desinformam a sociedade.
A Unesco (Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), que está
muito longe de ser um organismo autoritário, entende que há muitos motivos para que a regulação de conteúdo exista nos meios de comunicação de massa: promover a diversidade cultural; garantir proteção dos cidadãos contra material que incite ao ódio, à discriminação e ao crime, e contra a propaganda enganosa; proteger crianças e adolescentes de conteúdos nocivos ao seu desenvolvimento; proteger a cultura nacional, entre outros.
O mesmo faz a Constituição
brasileira. Ao definir, em seu artigo 221, que a produção regional e
independente deve ser estimulada, com percentuais mínimos de veiculação
na grade das emissoras, nossa lei maior está pedindo que se regule
conteúdo, para que a programação que chega ao conjunto da sociedade pelo
rádio e a TV não parta apenas do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Ao estabelecer que não mais de 25% da
grade de programação de uma emissora sejam ocupados com propagandas e
anúncios, o Código Brasileiro de Telecomunicações também está prevendo a
regulação de conteúdo.
A classificação indicativa dos
programas, que informa a faixa etária apropriada para determinado tipo
de conteúdo e em que horário ele deve ser exibido, visando a proteção da
infância, também é uma importante forma de regulação de conteúdo.
Apesar a Abert, associação que representa os interesses das emissoras de
rádio e TV, ter pedido no STF o fim da classificação indicativa,
alegando desrespeito à liberdade de expressão, o próprio relator
especial da ONU para Liberdade de Expressão, Frank La Rue, já emitiu
parecer afirmando que estes são direitos complementares e não podem ser
tratados como antagônicos. Ou seja, a proteção da infância não fere a
liberdade da expressão e, neste caso, o conteúdo também precisa ser
regulado.
O mesmo vale para a publicidade
dirigida a meninos e meninas. Em países como a Suécia, de forte tradição
democrática, a publicidade voltada para o público infantil já foi
abolida há muito tempo por meio de mecanismos de regulação de conteúdo.
Aqui, porém, novamente o argumento distorcido da proteção absoluta à
liberdade de expressão volta a ser usado contra a recente resolução do
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda),
que definiu que é abusiva a publicidade voltada para crianças.
Portanto, dizer que não existe
regulação de conteúdo no Brasil ou que ela não deva existir é um ato
leviano, de má-fé – no mínimo, uma conduta muito mal informada.
Democratizar a democracia
A construção de um ambiente de
comunicação mais justo e democrático é uma dívida antiga do país consigo
mesmo. A própria democracia fica comprometida sem uma comunicação por
meio da qual todos e todas possam falar e ser ouvidos, em que a
diversidade e a pluralidade de ideias existentes no país circulem de
forma equilibrada nos meios de comunicação de massa.
Se de fato a presidenta Dilma incluir
em seu programa de governo e, sendo reeleita, colocar em prática uma
política de regulação da radiodifusão, daremos um passo importante no
avanço da democracia brasileira. Mas não é a primeira vez que esta
possibilidade é ventilada. Em outros momentos, o PT chegou a pautar o
debate da regulação da mídia em seus programas de governo, e já se vão
12 anos sem que a questão seja concretamente enfrentada.
É por isso que, cansada de esperar, a sociedade civil tomou o problema nas mãos e está colhendo assinaturas para um projeto de lei de iniciativa popular,
que tem como objetivo estabelecer um novo marco regulatório para as
comunicações eletrônicas no país. O que se espera é que o debate sobre o
tema possa ser, desta forma, desinterditado junto à população em geral,
para acabar com a confusão proposital de que qualquer regulação da
mídia é sinônimo de censura. Pelo contrário, a regulação é necessária
para democratizar a alta concentração de poder instalada nos meios de
comunicação de massa, garantindo diversidade, pluralidade e um efetivo
exercício da liberdade de expressão do conjunto da população brasileira.
Espera-se agora que a presidenta
Dilma compreenda o tema em sua complexidade e abrangência, para que não
continue jogando água no moinho daqueles que trabalham com a
desinformação e distorção dos fatos para garantir que tudo continue como
está.
*Pedro Ekman e Bia Barbosa são membros da Coordenação Executiva do Intervozes.
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