domingo, 5 de abril de 2015

TRADIÇÃO PERNAMBUCANA >> Cultura regional ainda prevalece nos mercados públicos de Recife

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Com mais de 500 boxes, o Mercado de S. José é monumento tombado pelo Iphan e o mais antigo edifício pré-fabricado em ferro do país
Mais que centros de compra e venda de alimentos e bebidas, edifícios e boxes traduzem cultura popular genuína e contam histórias seculares sobre o país.

A regra é a mesma para todos os 30 mercados públicos de Recife. Abrir as portas às 6h, fechar às 18h. São portões de ferro robustos, como as sólidas estruturas das paredes. Mas cada um tem história, arquitetura e freguesia próprias. Afora os mercados centrais, São José e Boa Vista, que recebem público variado, de todas as camadas sociais e cantos da capital pernambucana, e também gente de fora, de outros estados e países, os mercados de bairro possuem suas próprias confrarias.

A Encruzilhada, por exemplo, teve seu mercado inaugurado no dia 9 de dezembro de 1950, no largo que leva o seu nome. É onde se encontra a melhor e a mais completa praça de alimentação entre todos os mercados públicos de Recife. Nela se reúnem a confraria portuguesa, a degustar bacalhau e polvo, culinária levada pelo compatrício Manuel José Alves, 75, oriundo da província tradicional de Trás-os-Montes e proprietário de O Bragantino. É um dos mais conhecidos e apreciados bolinhos de bacalhau da região.

Ao lado se faz a conexão sertaneja, com uma galinha de capoeira (chamada de caipira no Sudeste), cozida com legumes e servida com pirão. Coma e deguste acompanhada de uma das 300 marcas de cachaça artesanal da Paraíba, do Ceará, da Bahia, de Pernambuco ou Minas Gerais, na cachaçaria Minha Deusa.

“O mercado público, e isso vale para todos os mercados de Pernambuco, é símbolo da cultura nordestina. Aqui você encontra não somente os produtos característicos do nosso cotidiano, mas também as personalidades da nossa cultura” observa o empresário Luciano Oliveira, que juntou profissionais liberais e artistas numa associação chamada Parceiros dos Mercados. “Esse é um projeto de valorização da cultura do Nordeste. Os mercados simbolizam bem os nossos costumes”, opina o cantor João Lacerda, filho do também músico Genival Lacerda, e integrante do grupo.

Mercado de Casa Amarela: tradição e cultura popular

Inspiração francesa

“Mercado é negócio hereditário”, conta a presidenta da associação comercial dos locatários internos e externos do Mercado de São José, Ceça Tavares, permissionária de três boxes. Ela segue os passos de pai e mãe, comerciantes que ganharam a vida vendendo aves vivas, perus, galinha de capoeira, codorna, ovos e farinha no mercado da Encruzilhada.

Diferente dos pais, foi no ramo das ervas que a comerciante se especializou, fruto de outra herança de família. Os avós maternos, da nação dos índios Xucurus, ensinaram à neta o conhecimento medicinal e culinário sobre raízes e ervas que colhia nas terras do distrito de Passassunga, cidade de Bom Jardim, no agreste pernambucano. Ervas, mel, garrafadas para todos os males, em todos os mercados, no de São José tem em fartura.

São três comércios primordiais nas dependências internas do São José. Carnes, peixes, crustáceos e frios num setor à direita da entrada principal. Artesanato de corda, couro, palha, madeira, barro, bordados, renascença, redes, em quase todos os cantos. Religiosos, com imagens, velas, missangas, oferendas, fantasias, produtos ligados à umbanda, em um canto menor, mas de presença marcante pelas formas e cores, e de muita vitalidade nas vendas.

Nos boxes externos prevalecem as ervas, mel e garrafadas, tabacarias, grãos, amendoim, semente de guaraná e outras de origem amazônica, confeitarias e um sem fim de ambulantes, da feira livre a eletrônicos, papelaria e material escolar e de escritório, ferragens, panelas, coco, caldo de cana, pães e bolos, sorvetes e picolés, que compõem um movimento frenético. É o maior centro de comércio popular de Recife.


Com mais de 500 boxes, o mercado é um monumento tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o mais antigo edifício pré-fabricado em ferro existente no Brasil, inaugurado em 7 de setembro de 1875. Toda a estrutura do mercado foi fabricada na França e trazida para ser montada na capital pernambucana. No ano de 1989 um grande incêndio destruiu mais da metade da área. Somente em 1994 foi concluída a restauração, e o mercado retomou seu lugar no cotidiano do bairro e de toda a cidade.

A arquitetura é inspirada no Mercado de Grenelle, de Paris. Um monumento que privilegia o clima tropical, com iluminação natural e fluxo de ar contínuo, de forma que não se sente no mercado o calor que assola as ruas ao lado. Majestoso nas formas, na dimensão, na disposição do casario, e com riqueza de detalhes que impressiona.

E tem um “parente” na cidade, que em muito se assemelha em matéria de arquitetura e pela força e tradição do comércio, o Mercado de Casa Amarela. A estrutura principal é claramente inspirada no Mercado de São José, embora de dimensões reduzidas. Foi originalmente erguido na avenida Caxangá, em uma área até então predominantemente rural. Em 1928, começou a ser desmontado e levado ao bairro da zona norte. Atrás fica um anexo, o primeiro a ser construído, e já dissonante da arquitetura original. Outros foram erguidos nas proximidades para abrigar o comércio informal que sempre ocupou os espaços públicos, como ruas e calçadas.

Comparar as obras é deparar com as mudanças que passaram a marcar o espírito público. Um prédio de quase um século, que se mantém imponente no cotidiano social e histórico, com seus contornos traçados no ferro e em telhas inglesas, embora sempre carente de mais zelo. E seus anexos feitos nas últimas décadas, com telas de zinco e fiações expostas, construções mal engendradas e que só se mantém por conta da força de vontade da população. Afinal, é por um espaço livre para vender seus produtos que eles batalham.

O bairro da Boa Vista possui o mercado mais antigo da cidade ainda em atividade, com sua construção sendo ordenada por uma portaria de 21 de outubro de 1823. A data da inauguração é imprecisa, mas em 1865 o mercado já constava do mapa. Construído para atender a próspera e nobre população do bairro da Boa Vista, o mercado registra em livros e teses e na memória do povo um compartimento de venda de escravos e também de açoite de ladinos (gatunos). Tais comerciantes são anônimos na contemporaneidade e no registro histórico e social.

O Mercado da Boa Vista é um dos mais disputados espaços gastronômicos e de lazer da cidade, além de preservar em seus 64 boxes comércios tradicionais e presentes desde a mais tenra data, como carnes, frutas, verduras e mercearias, loja de artesanato e um salão de cabeleireiro. Possui arquitetura única entre os mercados do Recife, com seu largo corredor frontal repleto de pórticos e área interna composta de uma grande praça ladeada de boxes por todos os lados, formando um quadrado. O ambiente interno, com seus jambeiros, jaqueira, sapotizeiro e pau-brasil tecendo sombras sobre o pátio, há décadas inspira não somente os boêmios como também artistas, intelectuais e políticos, que fazem do Mercado da Boa Vista um ponto de encontro diário.


Durante mais de um século, a imponente construção funcionou como a Casa de Detenção do Recife, principal presídio da cidade e referência do Brasil Império. Abrigou de assassinos a políticos e intelectuais, como o escritor Graciliano Ramos. E foi o destino de vários presos políticos, como o comunista Gregório Bezerra, preso pela primeira vez ali em 1917. Projetada pelo engenheiro recifense José Mamede Alves Ferreira, inaugurada em 1855 e concluída em 1867, é uma construção erguida para intimidar os ímpetos revolucionários que brotavam em todos os cantos de Pernambuco.
De presídio a Casa da Cultura

Após funcionar 118 anos como presídio, em 1973 foi determinado o seu fechamento. Três anos depois, o prédio passou a ser conhecido como Casa da Cultura de Pernambuco. Apesar do nome, funciona na prática como um mercado público, destinado ao comércio de artesanato. Com 8.400 metros quadrados de área construída, abriga dois enormes painéis do pintor pernambucano Cícero Dias, que representam as Revoluções Pernambucanas de 1817 e 1824. E possui 168 lojas, sendo um dos mais seletos centros comerciais públicos do estado e visitado predominantemente por turistas.

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