quarta-feira, 9 de setembro de 2015

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Beco da Lama, para além da vida e da arte
Foto: José de Paiva Rebouças
Oscar Wilde foi quem soltou o jargão “a vida imita a arte”. Mas foi George Orwell quem provou o contrário. Isso a partir do Beco da Lama. Ficam nessa especulação besta se Zé Sperry pousou no Potengi. Que nada! George Orwell foi quem esteve aqui, e remexendo o mel no fundo do copo lá em Nazi, assistindo aquele cotidiano arrastado, soltou essa: “A arte imita muito mais a vida do que a vida imita a arte”, contradizendo Wilde.
Ora, de certo Orwell viu o rebolado de Gardênia in passant naqueles paralelepípedos disformes. Viu Helmut pedindo dois reais em troca de um guardanapo poético. Conheceu um poeta chamado Black Out, como se a poesia não precisasse sempre de luz. E enxergou ao longe o que disseram ser Osório, “o último comunista”. Foi quando pensou num filme chamado 1984, fazendo arte a partir das cenas da vida.
Isso sem falar nos tantos anônimos que mantêm o velho Beco até hoje sem migrarem aos registros oficiais. Veio deles, inclusive, a inspiração de Orwell para tantos artigos de cunho anarquista; veio da aura becodalamense, desde sempre um caos organizado numa vivência quase teatral, de personagens, lugares e folclores que parecem espetaculoso, imaginário, lúdico, como se a arte corresse embriagada por aquelas adjacências.
Mas a verdade ali é diferente. É a vida nua, crua e mais das vezes injusta. Gardênia, Helmut, Black Out, foram/são personagens de uma vida demasiadamente real, mas que poderiam figurar nos romances ficcionais de Orwell ou nos seus ensaios sobre política e socialismo real. São as pessoas poetas, as pessoas anônimas, as pessoas de vida incomum, ditas “marginais” e inseridas em crônicas banais como essa, mas invisíveis ao seio social.
É que no Beco da Lama há dessas misturas, dessas incongruências e contradições. Ali, definitivamente, a vida não imita, mas procura a arte como forma de amenizar os dias. E até esquece, por instantes, que enfrenta preconceitos pela existência boêmia, pelo anarquismo espontâneo de quem escolhe um chão libertário para passar uma tarde de cervejas e papos de calçada, para falar de poesia, de política e de futebol.
Não, amigo, a vida não imita a arte no Beco da Lama. Orwell estava certo. Naqueles chãos boêmios, a arte imita a vida. Mas a arte de viver. Sim, porque viver é uma arte. Chaplin lembrava que a vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Então, ali se discute, ali se briga, ali se bebe, se canta e se arrepende, se vive mais intensamente a verdadeira vida, mesmo que sem aplausos ou tapete vermelho.
E para encerrar a conversa, a arte imita a vida no Beco porque na arte tudo cabe e no Beco tudo há. É uma comunhão perfeita entre criação e criatura. No Beco da Lama se encontra o terreno fértil para telas de Franklin Serrão e Marcelus Bob, para performances de Civone, para Jarita aprontar das suas no carnaval das Kengas, para um tema de música aqui e uma peça de teatro ali, ou para Assis Marinho encontrar o olhar perfeito de São Francisco.
Mas quer saber? Penso mesmo é que a boemia imita o Beco da Lama. É isso. Porque a boemia está mais perto das alegrias e das tristezas do que a arte. Na arte, as vivências são dramatizadas. Na boemia, sobretudo do Beco, é a vida como ela é, para além de Nelson Rodrigues ou para muito mais do que Orwell ou Wilde conseguem decifrar em vãs filosofias. Ou o Beco seria a metáfora da Revolução dos Bichos?
* Publicado no jornal O Beco (edição de setembro)

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