sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

As cotas e a imbecilidade de Alexandre Garcia

Fonte: site  Carta Potiguar.
Alguém disse uma vez que existem dois tipos de imbecis: o superficial e o profundo. Na maioria dos casos, Alexandre Garcia, comentarista da Rede Globo, é apenas um imbecil superficial. Seus comentários matinais cheios de moralismo e boas intenções transmitem a imagem de um senhor indignado com os descalabros do país e, ao mesmo tempo, de alguém profundamente comprometido com a mudança do Brasil. Sua raiva é nobre, ele conhece, por sua superioridade moral e intelectual em relação às demais pessoas, todas as soluções que a nação precisa. A solução é simples: a nação precisa de pessoas como ele, que pensem como ele, com sua honestidade, sua vontade, sua inteligência.

No entanto, há ocasiões que Alexandre Garcia torna-se um imbecil profundo, isto é, aquele que aprofunda sua própria imbecilidade. Ele costuma fazer isso através de comentários agressivos e humilhantes para, novamente, demonstrar para si mesmo sua suposta superioridade moral e intelectual, a crença que lhe permite vender a imagem de um senhor indignado e comprometido com o progresso do país. São nessas ocasiões que ele costuma ser lembrado publicamente, e acabamos lhe dedicando mais tempo que ele merece, pois, na maior parte das vezes, seus comentários se esvanecem no ar.
Como no ano passado em que o ex-porta voz da ditadura disse que “o Brasil não era racista até criarem as cotas”, desrespeitando milhões de pessoas que sentiram e sentem na pele a crueldade do racismo, Alexandre Garcia proferiu mais uma pérola da sua imbecilidade profunda. Em matéria sobre o êxito de algumas escolas públicas de Brasília e a alegria dos alunos por terem ingressado na UnB, o jornalista para desqualificar sumariamente toda uma política pública e o esforço de alunos, professores e demais profissionais da educação disse que ali não havia mérito para que ocupassem as vagas na universidade.
Para Garcia, as cotas põem “lá um monte de gente”, e, como política, elas não pensam a qualidade de ensino, não premiam o mérito; “Só 67, você viu aí, passaram por mérito”. Não satisfeito em ignorar as pesquisas que demonstram que os cotistas igualam e até superam o desempenho acadêmico de não-cotistas, o jornalista comparou as cotas a um “pistolão”, a uma vantagem imerecida da qual algumas pessoas lançam mão para se beneficiar imoralmente sobre outras porque conhecem pessoas influentes. Em suas palavras: “Aqui no Brasil ele (o ensino) é todo assim por pistolão, empurrãozinho, ajuda. A tradução disso é cota”.
A comparação com o chamado “pistolão” não é somente indevida e desrespeitosa, ela é hipócrita, pois vem de alguém que sempre esteve ao pé da mesa dos poderosos. Em seu insulto aos alunos, Garcia desconsidera por completo a superação de dificuldades, como, por exemplo, citada na própria matéria, a violência na escola. Para Garcia não existe mérito em superar e se dedicar aos estudos numa escola onde alunos são assassinados. Não existe mérito em superar escolas com infraestrutura precárias em que as aulas tem de se resumir, muitas vezes, à fala dos professores, ao quadro e ao giz por falta de laboratórios, tecnologias multimídias, recursos para aula de campo… Não existe mérito em ter que lidar com falta de professores de determinadas disciplinas por longos períodos e, assim mesmo, aprender por conta própria, pelas próprias forças.
Em sua arrogância estúpida, Alexandre Garcia afirma que os que passaram sem as cotas, os 67, “estão aprendendo como é a vida, a concorrência, sem nenhuma humilhação de receber empurrãozinho”. Aprendendo como é a vida? Muitos desses alunos, assim como os cotistas, já aprenderam o que é a vida há muito tempo, já aprenderam a dificuldade de ter que trabalhar e estudar, de assumir responsabilidades mais cedo e contribuir com a renda de casa, ajudar com irmãos mais novos, ajudar no cuidado da casa enquanto os pais trabalham. Já aprenderam a dureza e a injustiça da realidade com suas desigualdades de vários tipos; a espera angustiada em postos de saúde precários, as longas distâncias percorridas em ônibus lotados para ir estudar, se divertir, se locomover, a vida com doenças e maus cheiros por causa da falta de saneamento e cobertura de esgoto nos bairros e ruas em que vivem, a insegurança generalizada que faz temer até mesmo os agentes que deveriam proteger, entre tantas mais.
Garcia fala de “humilhação de receber empurrãozinho” para pessoas que são verdadeiramente humilhadas por gente como ele; humilhadas em seu cotidiano por discriminações de classe e de raça que colocam em dúvida sua honestidade e capacidades, humilhadas pela indiferença social das classes mais abastadas e das instituições quanto ao desrespeito sistemático aos seus direitos como cidadãos. Superar tudo isso e passar numa das melhores universidades do país, não é, para o nosso jornalista, mérito. É empurrãozinho.

Para Alexandre Garcia, mérito é obter sucesso em suas aspirações tendo, de partida, todas as vantagens ou, pelo menos, sem a necessidade de superar grandes obstáculos externos a sua própria vontade e desenvolvimento livre de suas aptidões. Que estranho conceito de mérito que premia os já premiados pelo nascimento e pela sociedade! Uma sociedade desigual já é uma sociedade injusta, no entanto, se as desigualdades não servirem para promover benefícios e auxílios para os que são mais fragilizados pela desigualdade, então esta sociedade é intolerável. Em outras palavras, é exatamente isso que Alexandre Garcia defende ao ignorar as desigualdades e seus efeitos, ou seja, deseja que elas beneficiem ainda mais os privilegiados ao não permitir reparação e equiparação alguma para os que ocupam posições sociais de desvantagem na comunidade. Que meritocracia é esta, que é a base da vida, segundo o jornalista, que deseja manter uma competição em que uns largam bem mais à frente e com menos obstáculos do que outros?
A narrativa do esforço e do êxito social geralmente esconde as pré-condições que proporcionaram e impulsionaram o desenvolvimento das aptidões e dos talentos individuais, ou seja, o tipo de família que tivemos, o grau de escolaridade de nossos pais, a escola que frequentamos, as circunstâncias afetivas e cognitivas de nossa infância, os incentivos em nosso autoestima dado pelos professores que tivemos, os hobbies e lazeres que cultivamos com nossos amigos na adolescência, as aprendizagens extraescolares, como instrumentos musicais, jogos, línguas, as condições do bairro e da casa em que crescemos, o tempo livre que dispúnhamos para nos dedicar aos estudos, etc.. Realizar as potencialidades de nossas capacidades cognitivas e emocionais não é uma tarefa simplesmente definida por nossa vontade ou pela natureza. Ela é, também e especialmente, uma realização definida pelos estímulos sociais e afetivos que recebemos pelos contextos, oportunidades e condições em que crescemos e aprendemos. Esta é uma lição básica de toda a psicologia do desenvolvimento e aprendizagem e da sociologia da educação que a meritocracia absoluta passa inteiramente por cima.
Cego, por má fé ou ignorância, nosso jornalista ao invés de centrar toda sua indignação sobre as desigualdades sociais, responsáveis por condenar enormes contingentes de pessoas a não desenvolverem suas potencialidades e habilidades como poderiam e a não realizarem suas aspirações, ao passo que premia uma menor parte com a glória, o prestígio e a riqueza da autorrealização pessoal, prefere humilhar e rebaixar os que, superando grandes dificuldades, ainda lutam por tornar realidade seus sonhos profissionais e pessoais. Esta é a ousadia que pessoas como Alexandre Garcia não perdoam: pobres que ousaram sonhar, conceber a si mesmos e agir como indivíduos, isto é, definir eles próprios o que querem ser e o que querem alcançar, em vez de se contentarem com o destino que uma sociedade que naturaliza a desigualdade lhes projeta, qual seja: trabalhar e ser duramente explorados pelas classes médias e altas enquanto estas desfrutam de tudo o que a vida e a civilização tem de melhor para oferecer.
O que Alexandre Garcia e outros tantos não compreendem é que a admissão numa universidade não é uma honraria, um troféu individual destinado a premiar  as virtudes intelectuais dos “melhores” para que eles se sintam e os outros saibam que eles são “melhores” que os demais. A universidade não existe para isso. A admissão numa universidade serve a um projeto de sociedade, a propósitos de bem comum, que podem ser tanto contribuir para a realização pessoal quanto para promover o desenvolvimento, a igualdade social, a diversidade. A universidade não existe para recompensar o mérito e a aptidão de ninguém. Ela não é um pódio para eleitos sociais profundamente egocêntricos e narcisistas com suas supostas qualidades e virtudes superiores preocupados com sua própria distinção de classe. A universidade existe para contribuir com os ideais, metas e distribuição de direitos que toda a sociedade que lhe financia cultiva e espera que ela proporcione.
Os comentários de Alexandre Garcia, com a falsa indignação dos bens posicionados, não passam da voz caduca e desesperada de quem vê seu pequeno mundo de distinção ruir face a ascensão de pessoas, ideias e políticas que reivindicam para todos as condições de busca de seus objetivos e um tratamento com igual oportunidade, consideração e respeito. Podemos continuar a ignorar a imbecilidade superficial de Alexandre Garcia e de suas falas matinais, porém, sua imbecilidade profunda tem de ser sempre combatida, toda vez que ela se levantar para atacar direitos e a dignidade das pessoas.

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