Uso comercial de espécies da Caatinga para a indústria farmacêutica e de cosméticos, criação de pequenas usinas de energia alternativa capazes de bombear água de cisternas para irrigação e popularização da ecogastronomia com plantas nativas do semiárido foram algumas das propostas discutidas por 350 cientistas, gestores públicos, lideranças comunitárias e produtores rurais que se reuniram no sertão alagoano nesta semana. O foco do 3º Seminário Internacional de Convivência com o Semiárido, que aconteceu no Centro Xingó, em Piranhas (AL) entre os dias 03 e 04 de novembro era promover diálogos sobre desafios e possibilidades criadas por este tipo de clima, que é determinante no modo de vida de 25 milhões de brasileiros espalhados por todos os estados do Nordeste e do norte de Minas Gerais.
Nesse contexto, um dos maiores dilemas vividos hoje no sertão segue sendo o processo de desertificação da Caatinga: ao todo, já existem 11 mil quilômetros quadrados de área em situação severa que já assumem as características de deserto: elevadíssimas temperaturas, baixíssima pluviosidade e solos e açudes salinizados. Os prejuízos vão além da sensação térmica e da perda da biodiversidade. Segundo o pesquisador Alfredo Ribeiro, da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), que integrou a mesa de discussão sobre mudanças climáticas do evento, o estado de Pernambuco gasta hoje cerca de R$12,00 para dessalinizar cada metro cúbico de água em comunidades mais remotas, que não têm acesso à água potável e precisam recorrer aos açudes de água salobra. Segundo esclarece o cientista, que integra a Rede Clima, em boa parte dos casos, a água no semiárido já manifesta a presença de elevada quantidade de sal devido às condições naturais do solo, mas, com o avanço do processo de desertificação, muitas fontes de água que eram propícias ao consumo humano acabam se tornando salobras por conta desse novo cenário biogeoquímico.
Segundo os climatologistas, embora os modelos climáticos prevejam um clima mais adverso na região, a desertificação, em si, é uma condição relacionada à ação antrópica e não necessariamente a um fenômeno climático, porque o índice pluviométrico na região é relativamente alto se comparado a outras regiões de semiárido no mundo. “O território com menor índice pluviométrico do sertão tem mais chuva do que a região mais chuvosa de Israel”, compara o cientista Marcel Bursztyn, doutor em desenvolvimento econômico pela Universidade de Paris. Ele explica que a deterioração dos solos nesse caso tem a ver com o desmatamento focado em criação de gado e exploração de madeira para produção de carvão.
Tecnologia a favor da biodiversidade
Uma das entidades à frente da organização do evento é o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade IABS, que atua com projetos voltados para a inclusão produtiva de comunidades do sertão. De acordo com o diretor presidente da instituição, Tadeu Assad, o grande diferencial do encontro é proporcionar a integração de saberes locais e o conhecimento científico. Essa conexão, na sua visão, é muito importante para propiciar o aprimoramento de tecnologias sociais que possam melhorar a convivência com o bioma da Caatinga que, segundo ele, tem muito potencial a ser explorado. Na mesa das Mudanças Climáticas, Marcel Bursztyn e Saulo Rodrigues Filho, que integram a Rede Clima, apresentaram uma pesquisa da rede baseada em 1.140 questionários aplicados no semiárido para identificar as principais vulnerabilidades climáticas percebidas pelos produtores rurais. Mais de 70% dos entrevistados relataram prejuízos relacionados ao clima como perda de safra, elevação da temperatura e deslocamento do período chuvoso. Para Marcel, a partir dessa percepção é essencial estimular medidas de adaptação entre os produtores rurais. Tadeu Assad explica que, embora o clima tenha a tendência de ficar mais adverso com as mudanças climáticas, existe uma série de tecnologias que vêm demonstrando resultados positivos na região e, caso sejam implementadas de maneira mais consistente, podem garantir a qualidade da terra e o acesso à água. Entre os exemplos estão os biodigestores que permitem a produção de fertilizante para adubação orgânica, que recupera a fertilidade da terra, a barragem subterrânea, que represa a água de riachos que se formam no inverno debaixo da terra e o uso de energia solar para bombeamento de água de cisternas para irrigação, além de estrutura para a proteção de nascentes. Essas e outras técnicas focadas em garantir a produtividade agrícola já são utilizadas em propriedades hoje atendidas pela instituição e algumas delas existem no próprio Centro Xingó que sediou o curso.
Uma das mesas mais comentadas no evento, porém, foi um debate sobre uso comercial da biodiversidade da Caatinga, incluindo diferentes tipos de cactos como alternativa econômica mais adaptada ás condições da região, já que a agricultura de subsistência convencional enfrenta muitos desafios devido ao déficit hídrico. Entre os palestrantes estava o especialista Fidel Mejiá, que falou da experiência na México de produção comercial de palma para alimentação humana e outros usos. “Ao todo, o México tem identificadas 400 espécies de palma e nós produzimos cerca de 300 diferentes produtos à base dessas plantas, que têm alto valor nutritivo e terapêutico”, explicou Fidel. Entre os produtos processados à base da palma estão shampoos, sabonetes, doces, picles, molhos e diversos remédios. “A palma tem efeito antidiabético, antioxidante e anti-inflamatório” comenta o especialista. A professora Márcia Márcia Vanuza Silva, doutora em biologia celular e docente da Universidade Federal de Pernambuco é uma das grandes entusiastas da ideia. Hoje, ele conduz uma pesquisa que investiga o potencial fitoterápico e nutricional de 100 plantas nativas da Caatinga, que poderiam passar a ser indicadas na lista de plantas terapêuticas prescritas pelo SUS ou ser utilizadas na merenda escolar dos colégios do semiárido. A pesquisa parte do conhecimento dos próprios moradores locais, como benzedeiras e líderes comunitárias, mas se utiliza de uma parceria com a Fundação Oswaldo Cruz para testar o princípio ativo e a segurança das plantas. Segundo Márcia, atribuir valor comercial à Caatinga talvez seja a melhor estratégia para inibir o desmatamento degradante da região.
O pesquisador paraibano Frederico Pereira, da Universidade Federal da Paraíba, também defendeu o plantio das cactáceas de forma produtiva. Segundo ele, além da oportunidade de geração de renda para comunidades locais, esse tipo de cultivo tem vários benefícios para a região na recuperação do solo. “Fizemos uma experiência em um solo raso, jovem, pedregoso e extremamente assoreado e o resultado é muito positivo: aumento da porcentagem de matéria orgânica, maior retenção de água e redução da perda de solo durante as chuvas. Antes do replantio, chuvas de 20 mm eram capazes de arrastar mais de uma tonelada de terra”, conta Pereira. Para aproveitamento econômico da atividade, o cientista sugere a produção comercial de cactos para a alimentação bovina e mesmo para a gastronomia. Com o objetivo de inspirar essa prática, ele coordena o projeto Sabores da Caatinga, que cria receitas à base de plantas nativas para desmistificar o uso de cactos na alimentação humana. Entre os pratos criados no projeto de extensão estão o arroz cacteiro, o “palma dog”, o “creme de papalma com cassis”, entre outras criações batizadas de forma lúdica. “Invariavelmente as regiões com maior taxa de áreas degradadas são territórios que também registram maior insegurança alimentar. O cultivo de plantas nativas associado à ecogastronomia traria uma solução dupla”, diz Frederico. A mesa terminou em clima de entusiasmo com uma degustação promovida pelo jovem chef Timóteo Domingos, de apenas 19 anos. Desde os 7, ele cria doces, bolos, coquetéis e pratos diversos que misturam xique xique, óleo de licuri, mandacaru, coroa de frade, urtiga, além de sementes e flores da Caatinga. “A história começou como brincadeira, quando eu era criança e tinha que cortar a palmada para dar para o gado. Se gado come, por que a gente não podia comer?”, questionava o morador de Canindé de São Francisco, no sertão sergipano, que nessa época fazia cocada para vender na escola. Entre uma invenção e outra, percebeu que o xique xique dava uma textura cremosa e leve nas receitas de doce e passou a incorporar o ingrediente sem contar para ninguém por medo da resistência. Hoje, o jovem com oratória performática virou inspiração para grandes chefs, tem seu próprio restaurante, está lançando um livro de receitas, já percorreu mais de uma dezena de estados brasileiros dando palestras e oficinas e virou caso de sucesso em programas de tv nacionais e internacionais. Segundo Timóteo, o grande desafio para a incorporação das plantas locais na alimentação é a barreira cultural. “As pessoas ainda associam o consumo de palma à grande seca de 70 quando isso era tudo o que existia para comer nas regiões mais pobres. Mas as pessoas esquecem que as cactáceas têm sabor, textura e efeito bem interessantes, além de serem muito nutritivas. O preconceito ainda é muito grande, mas é na persistência que a gente chega aos nossos objetivos, como os próprios cactos, que florescem mesmo na adversidade da seca”, diz Timóteo.
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