domingo, 27 de janeiro de 2019

ARTIGO >> A sexualidade como fenômeno discursivo

Resultado de imagem para A sexualidade como fenômeno discursivoAo pensarmos a sexualidade diante da atmosfera (social, cultural e política) contemporânea, procuramos entendê-la como um fenômeno discursivo que se modifica conforme os tempos históricos e variadas formas de sociedade e agrupamentos humanos, como temos verificado ao longo da história das sociedades e civilizações.
Ao pensarmos a sexualidade como fenômeno discursivo na sociedade contemporânea, inevitavelmente, reconhecemos as particularidades e singularidades intrínsecas ao tempo presente. São as marcas da contemporaneidade que vão produzir variadas modalidades de discursos, elaboração, ações, formas de prazer e sofrimento com o que conhecemos como sexualidade. Foucault (2005)* nos faz refletir sobre:
Ora, considerando-se esses três últimos séculos em suas contínuas transformações, as coisas aparecem bem diferentes: em torno e a propósito do sexo há uma verdadeira explosão discursiva – e bastante rigorosa – do vocabulário autorizado. Pode ser que se tenha codificado toda uma retórica da alusão e da metáfora. Novas regras de decência, sem dúvida alguma, filtraram as palavras: polícia dos enunciados (p.24).
No pensar as modalidades de discursos contemporâneos sobre a sexualidade não temos como dissociar a presença e influência das ferramentas originárias da cultura on-line, virtualidade e pela cristalização das redes sociais na prática interpessoal e nas variadas formas de intersubjetividade exercida pelos sujeitos atuais.  Merecem atenção as novas formas de conceber a sexualidade e modos de investimento libidinal bem distintos de fins do século XIX.
Poderíamos pensar a sexualidade nesta atmosfera como “libertadora”, em que sujeitos contemporâneos não sofrem mais com as amarras de controle rigoroso de seus desejos e práticas que em tempos passados eram rigidamente vigiados, controlados e punidos por uma cultura repressora e vigilante da sexualidade. Mas, curiosamente a mudança do “nada pode” das sociedades rígidas e autoritárias do passado para o “tudo pode” contemporâneo não resultaram exatamente em libertação e melhores condições de estar e sentir.
Ao pensarmos a sexualidade sob a perspectiva de sujeitos singulares percebemos a existência de inomináveis queixas e dificuldades (essencialmente, parecidas com as concebidas na Era vitoriana, como bem testemunhou Sigmund Freud) que são originárias da produção de subjetividade diante da alteridade. E isso independe do tempo histórico em que o sujeito está inserido, pois não pensamos a sexualidade na perspectiva exclusivamente genital (coito) e sim vinculada aos aspectos constitucionais do sujeito e contingências de sua matriz afetiva (arcaica/primária) reproduzidas (via inconsciente) nas variadas formas de investimento libidinal e psíquico diante do desejo sexual.
A produção de subjetividade do sujeito contemporâneo carrega uma marca aparente de libertação, mas curiosamente esta mesma atmosfera de libertação também continua a produzir inúmeras formas de sofrimento e desamparo psíquico. Muito tem se falando em sintomas de sofrimento como depressão e ansiedade, muitos deles relacionados exatamente á questões de ordem narcísica e nas insatisfações relacionadas aos investimentos libidinais e afetivos.
A sexualidade sempre foi abordada pelo senso comum como relacionada à prática genital e ao coito exclusivamente. Como se esta prática fosse regida apenas pelo ímpeto biológico e com absoluta ausência de produção de subjetividade e de elementos inconscientes de cada sujeito. Daí o próprio sujeito em questão perguntar: “Por que é que eu sofro tanto?”.
É indissociável a discussão entre sexualidade e cultura, pois as sociedades de massa sempre produziram sujeitos que acabam por não enxergar sua própria singularidade e viverem (inconscientemente) conforme “verdades”, culpas e ditames biológicos, generalistas e deterministas que são fundamentais para que os valores dominantes de uma sociedade se reproduzam e se perpetuem. Daí que a atmosfera do aparente “tudo pode” e da livre exposição pode ser mais um estratégia de controle das sexualidades, mantendo os indivíduos em sofrimento, que se recorrem exatamente dos recursos e escapes da mesma sociedade que produz o sofrimento.
E esta atmosfera de “liberdade” pode ser resumida pela banalizada exposição dos corpos nas redes sociais, a liberdade dos encontros e de diversas formas de simulação como a pornografia. Mas é exatamente esta atmosfera de simulação de liberdade que aprisiona e adoece o sujeito contemporâneo, que não consegue dar conta do excesso de estimulação, que não traz o prazer e a completude desejada.
A grande questão é o lugar do sujeito singular, seja numa atmosfera repressiva ou de permissividade, pois em nenhuma destas o sujeito comum elabora psiquicamente algo sobre sua produção de subjetividade. Perambula como refém e reprodutor tanto dos valores repressores como também dos permissivos da sociedade que lhe sustenta política e culturalmente no cotidiano.
Discutir sexualidade incluí a sociedade que a concebe. Pois tenhamos como exemplo o resultado das últimas eleições em nosso país, em que a pauta da grave crise econômica e política foi ofuscada por uma bizarra agenda de costumes que tinha como centro a sexualidade. Uma observação mais apurada (sob ótica psicanalítica) sobre o comportamento coletivo (afetações com a sexualidade) neste contexto dos últimos anos daria uma substancial publicação sobre patologias psicossociais.
Os mecanismos de defesa dos psiquismos afetados protagonizaram expulsão de incômodos internos no que tange a sexualidade através de projeções** expostas nas manifestações “políticas” agressivas direcionadas aos segmentos que são considerados ilegítimos e que não correspondem aos valores da heteronormatividade. As projeções estão presentes no não dito dos discursos, que foram entrelinhas que acabavam por denunciar o quanto nossa sociedade está adoecida e os sujeitos a compõe com sérias inquietações não elaboradas em suas sexualidades.
Um fantasioso e imaginário “kit gay” protagonizou a produção insana e bizarra de discursos que expunham uma produção de subjetividade de sujeitos com clara dificuldade em lidar com o outro que lhe é diferente. Essa dificuldade estava presente no comportamento violento quando a perspectiva destes próprios sujeitos era confrontada com a diferença de natureza (corpo, política, cultura, etc), em claras demonstrações de dificuldade de lidar com prática interpessoal democrática e humanizada.
As dificuldades de lidar com a diversidade expressas nas demonstrações de agressão e ódio extremos encontraram, no atual contexto, atmosfera (política e cultural) favorável para tal manifestação, sem que houvesse constrangimento. Uma demanda psicossocial recalcada que agora está sendo impulsionada para livre vazão, pois agora se tem autoridades que também pensam assim e essa representação corrobora e naturaliza discursos de intolerância e tais demonstrações odiosas na esfera micropolítica.
Importante concluirmos afirmando que a discussão entre sociedade e sexualidade é algo indissociável, pois os sujeitos que compõe a sociedade são produtores de subjetividade e reprodutores de suas matrizes inconscientes singulares em suas práticas interpessoais no cotidiano e não meros reprodutores de condutas homogêneas e biológicas.
*FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: vontade de saber. Graal: Rio de Janeiro, 2005.
**No sentido propriamente psicanalítico, operação pela qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro – pessoa ou coisa – qualidades, sentimentos, desejos e mesmo “objetos” que ele desconhece ou recusa nele. Trata-se aqui de uma defesa de origem muito arcaica, que vamos encontrar em ação particularmente na paranoia, mas também em modos de pensar “normais”, como a superstição. (LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, J.B. Vocabulário da psicanálise. Martins Fontes: São Paulo, 2001).

Por Anderson Soares - Educador, Psicanalista e mestre pelo PPGH-UFRN (área de concentração: corpo, sexualidade e política do comportamento)

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