domingo, 13 de janeiro de 2019

EXCELENTE ARTIGO >> A Ideologia da Não-Ideologia no Brasil do Novo Governo


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No Brasil, nos últimos anos, pelo modo como apareceu nos discursos político e social, a palavra ideologia ganhou um destaque jamais visto. E é esse modo que é preciso analisar, pois, nele, está um emprego da palavra que é, em si mesmo, a expressão de uma dissimulação que, por sua vez, não sendo uma operação linguística ao acaso, é a maneira própria como a ideologia atua: capaz de camuflar-se, nunca aparecendo como aquilo que ela é, a ideologia tudo faz para parecer outra coisa. Amplamente repercutida pelas mídias, a palavra agora frequenta a conversação cotidiana, não sendo mais raro alguém falar de “ideologia de gênero”, “assédio ideológico”, “doutrinação ideológica, “escola sem ideologia”, “política sem viés ideológico”, entre outros exemplos.
Em geral, distanciados de alguma conceituação teórica mais específica, os empregos mais comuns da palavra ideologia, variando os propósitos e os sentidos conforme o matiz político do falante, levam a crer que ideologia é o mesmo que “ideias”, quaisquer que sejam, ou especialmente “ideias políticas” ou ainda algo como uma “causa” (boa ou má) pela qual ou contra a qual se combate. A assimilação desses usos e sentidos faz pensar que ideias são “ideologias”, que todas as ideias são “ideológicas”, e que cada um pode ter uma “ideologia própria”, ou ainda que “ideologia” é sempre alguma “ideia perigosa” ou sempre também ideias de algum interlocutor que se tem por possuinte de ideias “fechadas”, “dogmáticas”, “doutrinárias”. É assim que se fala de “disputa ideológica” ou de “enfretamento ideológico” no debate público e nas chamadas “redes sociais”, estes novos dispositivos por meio dos quais todos se autorizam a falar sobre tudo, e de qualquer maneira.
Mas, afinal, o que entender por ideologia? E por que se torna necessário compreender que nem todas as ideias são ideológicas e que corremos o risco de cair na ideologia ao se pensar que todo pensamento é ideológico? E por que é preciso denunciar que certos empregos da palavra ideologia, pretendo fazer crer que certas ideias, atos e intenções estão isentos do ideológico (que a ideologia estaria em outro lugar), são a ideologia por excelência?
Se o leitor tiver interesse em compreender um pouco mais sobre o assunto da ideologia (sobretudo para não sair por aí comprando gato por lebre, chamando de ideologia o que não é ideologia), convido a que prossiga até o final do texto, talvez um pouco longo para os dias de hoje de “internet”, que vem colonizando a mente de muitos para leituras rápidas e superficiais.
Ora, é da natureza da ideologia não poder se apresentar como tal, ela nunca aparece senão transfigurada em ideias, representações, imagens, discursos, e esta é a forma pela qual a ideologia melhor realiza seu trabalho, aquilo para o qual ela se destina: assegurar a ratificação de ordens sociais como se fossem sistemas insubstituíveis, eternos, sagrados e suas instituições como se fossem irrevogáveis. A ideologia corresponde ao modo de atuar (uma linguagem) dos diversos sistemas de sociedade e cultura, ao funcionarem como máquinas de produção de um vasto simbolismo, tendente sempre a fazer emergir a ficção (imaginária e simbólica) que os sustenta – algo como uma “ilusão fundacional”, constituinte das diversas sociedades humanas até aqui. E, por isso mesmo, como fenômeno social, resulta que a ideologia assegura a consagração simbólica de ordens sociais (todas elas), por meio de representações imaginárias e simbólicas que assegurem o desconhecimento do que as funda, ao atribuir-lhes sentidos e fundamentos inexistentes e que somente imaginariamente podem existir. Fenômeno que se verifica nas sociedades modernas, capitalistas, industriais, mas igualmente nas sociedades indígenas, tribais, pré-capitalistas, do passado e atuais, como demonstram os diversos estudos em antropologia, sociologia e história.
O que acabei de dizer não é exatamente o que dizem os seguidores de Marx e Engels, os primeiros pensadores que, no século XIX, escreveram trabalho, que deram por título “A ideologia alemã”, no qual outorgaram ao termo ideologia um sentido que o tornou sinônimo de uma inversão da gênese e do caráter da realidade social, ao esta adquirir a aparência de autônoma em relação à própria sociedade e aos seus agentes. Para muitos de seus seguidores, a ideologia é reduzida a um instrumento da dominação de classe, basicamente à dominação da classe econômica e politicamente dominante nas sociedades burguesas-modernas, capitalistas. Mas, se o sentido dado por Marx e Engels ao termo ideologia nunca mais foi esquecido e conserva sua importância até hoje, todavia, a análise do fenômeno do ideológico ganhou novas contribuições teóricas, nem mesmo sendo mais o caso de falarmos de um conceito marxista de ideologia como único, pois temos o que podemos chamar de uma conceituação pós-marxista de ideologia, que ampliou e aprofundou a análise crítica do fenômeno.
Todavia, não vou dar continuidade aqui a assunto tão complexo e demorado.
II 
Assim, torna-se necessário denunciar que a retórica discursiva que imputa caráter ideológico ao pensamento e as ideias que são, a justo título, aquilo que a filósofa Marilena Chauí chamou de “antidiscurso da ideologia”, a sua negação – pensamentos e ideias que constituem a crítica à ideologia –, corresponde à retórica de uma manobra ideológica por excelência, pois, escondendo-se como ideologia que é, atribui conteúdo ideológico onde a ideologia não se encontra. Retórica de uma falácia que nomeio aqui ideologia da não-ideologia, pois discurso que pretende fazer crer que “viés ideológico” há quando a crítica e a desconstrução do discurso ideológico fazem o seu trabalho, mas nunca quando a ideologia (ela própria, e, em alguns casos, cinicamente) trabalha eficazmente.
Os discursos do presidente da República e de alguns de seus ministros, recentemente empossados, são portadores dessa falácia ideológica que é preciso desmascarar.  Quando dizem que “este será um governo sem viés ideológico”, que, nele, “não haverá doutrinação ideológica nas escolas”, “não será admitida a ideologia de gênero”, que o governo “combaterá o marxismo cultural”, “valorizará a família”, que “evitará a derrubada de nossas mais claras tradições”, entre outros exemplos, estamos diante do mais engajado discurso ideológico nos últimos tempos no Brasil, diante da ideologia em fórmulas exemplares. Mas, como observou também Marilena Chauí, estudiosa marxista da ideologia, “o discurso ideológico se sustenta, justamente, porque não pode dizer até o fim aquilo que pretende”, torna-se necessário denunciar o que em cada uma dessas afirmações se pretende dissimular, ocultar.
“Sem viés ideológico” não é o que se pode dizer de um grupo político e de um governo identificado com os interesses dos grandes grupos do Boi, da Bala e da Bíblia, cujos objetivos conservadores se estendem da agricultura à educação (escolar, social e moral). O conservadorismo é aspecto da ideologia que salta à vista, não sendo possível imaginar ideologia que não seja conservadora – toda ela é. A ideologia é sempre conservadora, procura sempre a conservação do instituído, da realidade institucionalizada. Igualmente, não é possível imaginar conservadorismo que não seja ideológico, todo ele é.
Falas como “nosso governo valorizará a família” ou “evitará a derrubada de nossas mais claras tradições” não deixam dúvida do governo profundamente ideológico que teremos, com ministros militantes da ideologia, embora pretendendo fazer crer que a ideologia não existirá em seus atos e ideias. Que é a família que se fala aí e que se diz será valorizada? Quais são essas “mais claras tradições” que estariam sendo ameaças? No discurso ideológico, há sempre o que não se diz ao dizer, alertaram muitos estudiosos, e, assim, quando (pela boca de vários deles que agora ocupam funções de Estado) se diz “família” a menção é a uma ideia (ideológica) de família, pois concebida como sendo aquela constituída por um homem e uma mulher, com ou sem filhos, negando-se a existência de diversas outras famílias, cujas configurações não são mais restritas a um modelo que custa pensar que tenha alguém que ainda acredite seja único. E, claro, uma ideia de família que, principalmente, visa eliminar da imaginação social a possibilidade efetiva da família gay (aqui entendida em sentido amplo: as uniões de pessoas LGBTI). Conservadores e reacionários, não admitindo que o Estado reconheça o casamento gay, famílias gays, como timidamente o fez no Brasil, retornam com o discurso ideológico de “valorização da família”, como se gays, lésbicas e trans, solteiros ou casados, com seus desejos e demandas por reconhecimento e institucionalização de seus direitos, representassem uma ameaça ou diminuição do valor social da família. Conservando suas visões, para as quais a homossexualidade e a transexualidade são atributos negativos, patologias, desvios de conduta etc., conservadores e reacionários não admitem a legitimidade e a dignidade de gays, lésbicas e trans.
Não é por acaso que, para reforço de suas intenções, e para o ataque no âmbito ainda das questões de sexualidade e gênero, os ideólogos conservadores brasileiros logo viram na ideia de “ideologia de gênero” (que já circulava em outros países) uma fórmula apropriada, utilizando-se de todos os meios para difundi-la. O que é chamado de “ideologia de gênero” é paradoxalmente (mas cinicamente) os estudos que cientistas sociais e filósofos realizam e cujas conclusões permitem compreender os efeitos nocivos de uma educação social e moral nesse âmbito, nos sistemas de sociedade que são os nossos, ao pretendem fazer crer que identidades e práticas de gênero são realidades de natureza biológica, imodificáveis, algo como substâncias com as quais homens e mulheres já nascem, definidas na vida embrionária, essências universais que apenas ganham formas sociais, mas não coisas aprendidas, socialmente construídas, impostas, compartilhadas, reproduzidas, e, portanto, de alto a baixo, modificáveis, substituíveis. O que poderia ter sido visto como uma compreensão em tudo capaz de desconstruir apreensões erradas dos fenômenos do gênero e da sexualidade – com o que poderíamos também passar a uma educação familiar e escolar que ensine a crianças e jovens outras concepções do que seja gênero e identidades de gênero, capaz de modificar as atuais relações entre homens e mulheres, na própria esfera das relações heterossexuais (em muitos casos, plenas de violência) – foi transformado em perigosa doutrinação desestabilizadora do que nunca existiu: homens e mulheres biologicamente definidos. Mas, para os ideólogos detratores dos estudos de gênero, a serem validadas as concepções apresentadas por esses estudos, nossas sociedades correm o risco de se verem sem mais fronteiras claras entre os gêneros (isto é, sem mais conceitos que separam homens e mulheres como se, na natureza biológica destes, já viessem inscritos os papéis sociais e padrões culturais que só existem neles por aprendizado e inculcação). Cabe acrescentar aqui, o discurso ideológico que chamou de “ideologia de gênero” o que é, de fato, a crítica teórico-científica à verdadeira ideologia de gênero, reproduzida nas nossas sociedades, tem se apoiado grandemente na onda biologizadora do social e do comportamento humano, que conta com os favores de pretensas “pesquisas científicas”, hoje citadas até por pastores, numa curiosa aliança entre religião e “ciência”, mas só até quando interessar, pois, no que chamam de “doutrinação ideológica” nas escolas, põem no meio o ensino da ciência evolucionista, histórica, sociológica, que os ideólogos conservadores e religiosos gostariam de ver substituídas pelo ensino do criacionismo, do pensamento religioso etc.
Mas, sem que possa sustentar ser um governo sem ideologia, o novo governo que assume vai deixando entrever, em seus primeiros dias, a sua fúria ideológica contra tudo aquilo que, por delírio, fantasia ou (dis)simulação calculada, chama de “doutrinação ideológica” e, ridiculamente, de “marxismo cultural” e, pateticamente, de “libertação [do povo, do país] do socialismo”, quando, até aqui, não se sabe sobre qual país se fala e sobre quais dados se apoiam o presidente e seu grupo, uma vez que, no Brasil, nunca tivemos o socialismo como modo de produção e governo político da sociedade (o que teria feito que o Estado passasse a ser o proprietário único dos meios de produção e a propriedade privada tivesse sido abolida, para ficar apenas em duas das características do socialismo; a ideia que a sociedade brasileira foi socialista por algum tempo deve ter levado ao riso algum burguês esclarecido da nação – deve haver algum…). Referem-se aos governos políticos de Lula e Dilma Rousseff? Dominados pela ideologia, chamam meras políticas (mas que faziam falta ao país) do Estado de Bem-estar social, praticadas pelos governos passados do PT, de “socialismo” e procuram agora fazer a todos acreditar que esses mesmos governos “propositalmente investiam na formação de mentes escravas das ideias de dominação socialista” (palavras do Presidente). O que não pode ser visto como ignorância ou estupidez, mas estratagema ideológico de produção de um inimigo a ser combatido, no velho estilo militar, que produziu a ideologia de segurança nacional nos anos dos governos militares, até 1985, para a qual existia um inimigo ameaçador a ser combatido: o comunismo. Estamos de volta ao fantasma do comunismo, na forma agora de um suposto “socialismo” que rondaria ou já estaria circulando no interior da sociedade brasileira. Tão real quanto duendes!
Talvez explica-se assim porque ministros do novo governo falam de combate a um presumido “marxismo cultural” que estaria espalhado nas escolas, universidades, meio artístico, entre certamente outros exemplos. E, claro, sendo o marxismo a teoria que orienta a implantação do socialismo, esse marxismo, como imaginam os ideólogos do novo governo, deve ser implacavelmente combatido como algo que “faz mal à saúde da mente, do corpo e da alma” de professores e estudantes, “porque [o marxismo cultural] secciona o ser humano, o torna massa, o torna coisa”, sendo o “culpado pela falta de autoestima dos professores e pelas notas baixas de alunos brasileiros” (sic.). Essa fala é do novo ministro da educação, que também se expressou nos seguintes termos: “vamos defender na educação valores caros à sociedade brasileira, que é conservadora”. Nada mais ideológico que a ideia segundo a qual uma sociedade, sendo conservadora, deve permanecer conservadora. Como se a cultura e a sociedade fossem imutáveis, como se suas instituições, suas crenças e valores estivessem escritos em pedra e não pudessem ser modificados, revogados. E que pensar de um ministro da educação que não vê a educação como experiência e oportunidade de mudança do modo de pensar de todos, podendo ser uma experiência de transformação dos indivíduos e da sociedade? Por suas falas, vê-se que se trata de um ministro que será um guardião da ideologia, ainda que se dizendo contrário à “doutrinação ideológica” na educação. Se não fosse ele um ideólogo conservador, engajar-se-ia em verdadeira desideologização como algo bastante diferente do que anuncia, pois, a desideologização de fato corresponde à ultrapassagem da ideologia como modo de compreensão da realidade, ao esclarecimento teórico-filosófico-científico que é capaz de produzir a dessacralização e a desnaturalização da realidade e a despreconceitualização dos indivíduos e da sociedade, produzindo ainda emancipação e autonomia do pensar e do agir destes. Mas, ao que parece, o horror está só começando…E, quem sabe, nossas crianças, que passarão novamente a ser chamadas de “princesas” (as meninas, que vestirão rosa!) e “príncipes” (os meninos, que vestirão azul!), passem a aprender nas escolas que todos nós nascemos de Adão e Eva, que a Terra é plana e imóvel, que o Universo não se expande e tudo nele foi concebido por um deus cujo propósito o ser humano ignora… mas que Bolsonaro e seus ministros foram por ele predestinados para colocar o “Brasil acima de tudo” e, ungidos pelo próprio deus, colocá-lo “acima de todos”.
Um último exemplo do discurso ideológico do novo governo, que se quer não-ideológico: na fala do presidente e seus ministros, nossos povos indígenas, alguns entre os mais distintos da humanidade, como os ianomâmi, no não-dito do discurso, aparecem como um estorvo ao desenvolvimento econômico e a demarcação de terras indígenas como um desperdício. A dissimulação ideológica fala, todavia, em “integração” dos indígenas à sociedade brasileira, sendo seu “isolamento” algo “não desejado por eles”, mas uma “imposição” de presumidas ONGs. Noção ideológica, a ideia de isolamento é recusada pelos próprios indígenas.
Aqui está talvez o caso mais exemplar de como a ideologia tudo faz para negar que a realidade existente, sendo de natureza convencional, uma construção social e humana, pode ela ter diversas configurações. Quando o discurso ideológico busca fazer crer que nossos povos indígenas estão “isolados” e que “necessitam” ou “querem” sua “integração”, temos uma atuação da ideologia no sentido de afirmar o modelo de sociedade no qual vivemos como sendo único e inevitável, simultaneamente quando se nega o modo de vida indígena como um modo alternativo de viver, um outro modo de existência humana, assentado em outro modo de produção e outra lógica social. Aliás, quando deveríamos pensar que são nossos indígenas que talvez estejam a indicar que é possível viver de outras formas que não as que construímos e que, ideologicamente, e estupidamente, temos por únicas, necessárias e insubstituíveis.
Por Alipio DeSousa Filho – Cientista social, professor da UFRN, autor de “Tudo é construído! Tudo é revogável” (São Paulo, Cortez Editora) e coautor de “O que é ideologia?” (Lisboa, Escolar Editora)

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