quarta-feira, 2 de abril de 2014

IPEA e a Violência contra a Mulher: a persistência da dominação masculina

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 Fonte:  site Carta Potiguar

Ao final de março, mês em que se comemora o dia das mulheres em memória ao acúmulo de mobilizações e luta por direitos mas também ao histórico de violências e opressão sofridas por conta dessa luta, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada apresenta os execráveis resultados de uma verdade chocante, mas esperada, acerca da tolerância social da violência contra as mulheres. 

No estudo, constatou-se que nada mais nada menos do que 58,5% dos entrevistados concordam totalmente (35,3%) ou parcialmente (23,2%) com a estúpida e odiosa ideia de que se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros. Outros 65,1% concordam inteiramente (42,7%) ou parcialmente (22,4%) com a ideia absurda de que as mulheres que se vestem com roupas curtas merecem, frise-se, merecem ser atacadas!

Ora, não obstante às diferenças culturais acerca da sensualidade, se as roupas fossem uma causa ou motivação no mínimo relevante, países como a Índia ou países islâmicos em que boa parte das mulheres vestem-se com vestimentas longas não possuiriam altos índices de estupro. Não são as roupas nem o comportamento das mulheres, mas normas socialmente aceitas que concebem as mulheres como corpos-para-o-outro, como objetos disponíveis para a vazão dos desejos e vontades masculinas.

Há outros dados, na pesquisa IPEA, que revelam outras faces da violência contra mulher, as quais não obtiveram, na divulgação pela imprensa, a mesma atenção.  Nas perguntas acerca da resolução dos conflitos domésticos, a maior parte dos entrevistados defende que estes devem ser resolvidos pelos envolvidos membros da família. Assim, 63% concordaram, total ou parcialmente, com a questão de que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre membros da família”; outros 89% e 82%, respectivamente, concordaram com as frases “roupa suja deve ser lavada em casa” e “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Outros importantes resultados acerca da dinâmica de poder familiar na intimidade entre o casal foram os dados segundo os quais 27% das pessoas entrevistadas concordam que a mulher deve ceder aos desejos do marido mesmo quando ela não estiver com desejo e o dado com respeito a frase “os homens devem ser a cabeça do lar” no qual 64% dos entrevistados e entrevistadas manifestaram concordância total ou parcial.

Tais resultados exprimem a situação de vulnerabilidade e a sujeição a que as mulheres estão submetidas no interior dos lares brasileiros. O que temos nesses dados é a percepção de que os conflitos familiares e íntimos são uma questão privada, e, por essa razão, com efeito, a intervenção de esferas sociais mediadoras como o Estado, a polícia e o Direito são ilegítimas e desnecessárias. Portanto, revelam a legitimação da posição vulnerável e de desproteção da mulher no interior dessa relação de poder em que o familiar possuiria prevalência em relação à interferência exterior e pública. Na prática, isso não significa maior autonomia para a negociação do casal mas sim a preservação do poder familiar patriarcal, com suas hierarquias e desigualdades de gênero, em que o masculino e o homem detêm a autoridade e poder das decisões sobre o espaço doméstico e sobre as mulheres, impondo-lhes uma dupla sujeição: o silenciamento sobre a sua palavra e vontades e a negação de seus direitos pela deslegitimação do recurso a outros meios institucionais exteriores à família e ao domicílio para resolver os conflitos íntimos.


Não por acaso, como mostram outras pesquisas, parte significativa das mortes das mulheres, ou melhor, dos feminicídios (mortes de mulheres decorrentes pelo fato de serem mulheres, portanto, resultante de conflitos e violências de gênero), ocorrem no domicílio e são perpetradas por parceiros íntimos e familiares (namorados, noivos, esposos, maridos, pais, irmãos mais velhos, etc.). De um ponto de vista das relações de poder e da percepção social a propósito de como se deve resolver conflitos íntimos, o imaginário patriarcal continua forte e atuante entre nós.

A conclusão a se retirar da pesquisa vai além do grau de aceitação social da violência contra mulher e de sua culpabilização enquanto agente responsável pela própria violência que sofre, conclusões por si só estarrecedoras numa sociedade que pretende alcançar um patamar mínimo de civilização. Os dados nos permitem concluir, com efeito, que continuamos a ser uma sociedade culturalmente mediada e organizada pela ideia de dominação dos homens sobres as mulheres, a despeito de todos os avanços e transformações sociais e jurídicas que já permitem por em xeque essa representação. O poder masculino e as normas patriarcais de subordinação da mulher continuam a ser a representação dominante, isto é, constituem valores socialmente aceitos, desejáveis e operantes nos esquemas de percepção e avaliação das pessoas, modelo para atitudes, comportamentos e emoções a serem seguido. O que, inevitavelmente, resulta numa eficácia prática e em consequências muito reais nas relações sociais rotineiras entre homens e mulheres, uma vez que tal modelo será a base de muitos relacionamentos, das identidades e expectativas acerca do lugar, da função e das condutas de cada um, do ser homem e mulher.

O compartilhamento da dominação masculina e da cultura patriarcal não resulta apenas na insensibilidade social perante a violência contra as mulheres, no abuso, nos estupros, nas agressões. Não estamos tratando aqui de um resíduo cultural que se exprime ocasionalmente. A cultura da dominação masculina está na raiz da efetiva persistência da resistência social ao reconhecimento da legitimidade dos direitos sexuais e das mulheres enquanto sujeito de direitos e amparadas por proteções legais contra desigualdades, opressões e violência de gênero e doméstica. Continuamos a não-reconhecer as mulheres como sujeitos de seus corpos, desejos e portadora de direitos e proteções que lhe asseguram isso.

Se a naturalização do imaginário machista e patriarcal já era uma conclusão esperada nem por isso quando exibida em números mais concretos ela deixa de ser chocante. Muito pelo contrário, expõe o tamanho do desafio a se enfrentar na busca por relações sociais de reconhecimento e de igualdade entre os gêneros. As mudanças sociais e os incrementos jurídicos na questão das mulheres e da violência de gênero devem se somar, irremediavelmente, a transformações culturais e das relações sociais somente alcançadas por uma educação democrática, generalização dos Direitos Humanos e por uma esfera pública comprometida e atuante com os valores da igualdade, diversidade e reconhecimento, portanto, crítica e refratária às práticas e atitudes machistas e patriarcais. Em outras palavras, como propôs o sociólogo francês Pierre Bourdieu no importante A Dominação Masculina é imprescindível uma revolução simbólica nas categorias incorporadas que presidem a forma de pensar os gêneros, suas relações e funções naturalizadas, somente assim pode-se implodir as formas de percepção que perpetuam a ordem social existente de subordinação das mulheres.

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