A última manifestação “contra a Copa” em São Paulo reuniu um punhado
de manifestantes e nela foi queimada uma bandeira do Brasil, exasperação
para o apelo midiático.
É uma coisa de qualidade nova. Mais que o complexo de vira-lata e
mais que o senso de desprezo nacional por parte de uma camada restrita
da alta classe, esse pretenso movimento social incitou ao ódio nacional.
Um caroço novo que se incute na sociedade brasileira, normalmente não
afeita a isso, e muito presente em outros rincões, alavancando a direita
extremada a capitalizar politicamente.
A que serve e a quem serve essa iniciativa? Não se deve considerar
ser ingenuidade ou simples primarismo o que motivou a iniciativa – não
pelo que vemos nessa manifestação, que acaba conspurcando até os
movimentos sociais que, certos ou errados, reclamam contra a Copa para
alcançar reivindicações sinceras. E a esta altura da luta, na atual
correlação de forças no mundo e no Brasil, não se deve imaginar que isso
foi espontâneo, não mesmo.
Queimar bandeiras se tornou um marco de protesto contra o
imperialismo, contra os atentados, golpes e guerras promovidos,
sobretudo, pelos EUA em todo o mundo. Ainda hoje isso vige, contra as
guerras “humanitárias” promovidas pelo presidente Nobel da Paz (!),
enquanto os mais de 1 milhão de soldados que fizeram a guerra, desde o
Vietnã, ditos “heróis da pátria” são verdadeiros párias sociais ao
retornarem mutilados e portadores de doenças mentais. É conhecido o
escândalo dos veteranos de guerra abandonados nos cuidados à saúde que
tem lugar hoje nos EUA.
Nada a ver com situação brasileira, muito menos com a Copa. O que
ocorreu em São Paulo desserve à causa popular. Claramente, leva água
para um moinho que não é o do povo brasileiro, de seus interesses
imediatos e fundamentais. Não vai nessa condenação nenhum nacionalismo,
embora sim o patriotismo (que é o caso de invocar quanto à Copa e quanto
à torcida sincera pela seleção).
Ingenuidade é crer que a maioria do povo seria contra a Copa no
sentido pretendido pelos tais manifestantes e disso fizesse uma bandeira
política para derrotar o governo. O eleitor vai separar friamente os
ganhos e as perdas nessa iniciativa. Não se pautará por isso para
decidir seu futuro, o futuro do país na encruzilhada das eleições
presidenciais. As pessoas sabem decifrar seus interesses.
O importante é que as forças estruturadas politicamente não se
omitam, porque ajudam a promover o debate racional sobre os interesses
do movimento social e da luta política que serve à maioria do povo e à
afirmação nacional. Eis aí a disputa: buscar fazer prevalecer valores
progressistas, com a experiência das forças sociais mais politizadas e
experientes, desde que estejam abertos a ouvir e dar guarida às
aspirações, formas de ver e agir dessas novas camadas, em especial
mulheres e jovens, de seus anseios, insatisfações e protestos.
Não há como considerar que o povo brasileiro seja ingênuo
politicamente. As últimas disputas políticas realizadas no país, depois
do terror anti-Lula que deu na eleição de Collor, indicam que vão
separando joio de trigo, pensam nos seus interesses, valores e
expectativas sociais quando votam; decodificam mensagens partidárias na
TV; desconstroem e reconstroem, em modo próprio, narrativas críticas
sobre o que se propõe. Está mais esclarecido, tem sua própria forma de
moldar opiniões, outro padrão social-familiar e etário no núcleo que
rege a formação de opinião e forma a maioria da sociedade. Aliás, as
três últimas eleições presidenciais foram marcadas pelo signo de que os
órgãos e segmentos sociais ditos formadores de opinião, não fizeram
valer sua opinião.
Esses contingentes sociais estão em disputa política, daí o afã da
mídia hegemônica (e oposicionista) em produzir mau-humor a partir do
mal-estar social com a vida urbana, os reclamos de que os avanços
mantenham a aceleração dos últimos anos, as reivindicações de serviços
públicos e melhora da representação e governança política. Mas
pergunta-se: por que não o conseguiríamos, a partir do legado destes
doze anos e da capacidade de promover ainda maiores mudanças?
Relembro Mário de Andrade e um comentário anterior que fiz ao povo
como o heroi sem nenhum caráter. “Depois de pelejar muito verifiquei uma
coisa me parece que certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que
alguém já tenha falado isso antes de mim porém a minha conclusão é (uma)
novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a
palavra caráter não denomino apenas uma realidade moral não, em vez,
entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos
costumes, na ação exterior, no sentimento, na língua, na História, na
andadura, tanto no bem como no mal”.
Dizia na ocasião que não se deve tomar mais ao pé da letra essa
ideia, pois ele avançou em forjar uma identidade própria (que, aliás, é
marcantemente simpática aos olhos da maioria do mundo). Seu caráter já
tem traços constitutivos, e a própria diversidade pode ser considerada a
principal marca desse caráter, de um povo que se amalgama (como previa
José Bonifácio de Andrada, o patriarca da independência) e que não está
preso a fundamentalismos e verdades acabadas, por isso aberto para o
futuro.
Talvez os brasileiros estejam menos dionisíacos com o futebol – uma
paixão mais racional, digamos assim – e isso não é necessariamente um
mal; quem sabe, efeito do caráter do povo que vai se moldando e de um
maior nível civilizador alcançado com a redução relativa das
desigualdades sociais. Valha a pluralidade de opiniões e o direito de
todos em se manifestar, mas também quanto a condenar a queima da
bandeira brasileira.
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