Carta escrita por presos políticos do Presídio Barro Branco, em 1975, traz nomes e codinomes de 233 torturadores do regime militar
Escrito por: Agência Brasil
Uma carta escrita por presos políticos do Presídio Barro Branco, em São
Paulo, em 1975, e que trazia nomes e codinomes de 233 torturadores do
regime militar no país foi revista e virou um livro, lançado nesta
segunda (16) na Assembleia Legislativa paulista pela Comissão Estadual
da Verdade de São Paulo.
O livro Bagulhão: A Voz dos Presos Políticos Contra os Torturadores
traz a carta que foi enviada ao presidente do Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil (na época) Caio Mário da Silva Pereira. Segundo
a comissão, foi a primeira denúncia pública de presos políticos sobre
torturas e torturadores, embora outros documentos tenham sido elaborados
na época e divulgados, mas de forma clandestina.
O nome Bagulhão se refere, segundo o ex-preso político Reinaldo
Morano Filho, ao fato de o documento ganhar volume com o passar do tempo
e também porque bagulho, na linguagem usada por quem estava preso,
significava algo que os “presos temiam muito” ou algo perigoso. O
documento, segundo ele, começou a ser produzido pelos presos em 1969, de
forma conjunta, e foi feito de forma sigilosa, para que os militares
não tivessem conhecimento sobre ele. O primeiro nome da lista de
torturadores é o do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou
o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de
Defesa Interna (DOI-Codi) de São Paulo.
O documento, explicou Morano Filho, consistia em um calhamaço de 28
folhas com as assinaturas de 35 presos. Além da identificação dos
torturadores, o documento descrevia também os principais métodos e
instrumentos de tortura que eram empregados pelos órgãos de repressão e
as condições carcerárias. O texto dessa carta foi encerrado pelos presos
no dia 23 de outubro de 1975, mas ganhou um post-scriptum dois dias depois para incluir a notícia da morte, sob tortura, do jornalista Vladimir Herzog.
Morano Filho, que militava pela Ação Libertadora Nacional (ALN), ficou
preso entre agosto de 1970 e março de 1977, em diversos presídios, entre
eles, o de Barro Branco, o Tiradentes e no DOI-Codi. Ele foi um dos que
assinou e elaborou o documento. “Como sobreviventes, nos colocamos como
testemunhas de assassinatos e de perseguição política que se fazia
naquele momento. Daí resultou nessa carta”, disse.
Para que o documento chegasse às mãos de Caio Mário, sem ser
interceptada pelos militares, os presos decidiram por uma saída
clandestina: eles montaram um compartimento no interior de uma garrafa
térmica, entre as partes de vidro e de plástico da garrafa, onde o
calhamaço foi alojado. A garrafa foi então usada para servir café aos
advogados que visitariam seus clientes no presídio. Com isso, pelas mãos
de um advogado, o documento chegou a Caio Mário. “E sem prejuízo do
café”, disse Reinaldo Morano Filho.
A carta foi enviada ao dirigente da OAB porque, em agosto daquele ano, Caio Mário deu uma declaração ao jornal Folha de S.Paulo
em que dizia que não tinha conhecimento de denúncias concretas de
prisões irregulares e de arbitrariedades policiais e de que precisava de
mais informações sobre o que estava ocorrendo no país. “Nós, presos
políticos abaixo-assinados, recolhidos no presídio da Justiça Militar
Federal, São Paulo, tomamos conhecimento das declarações emitidas por
Vossa Senhoria lamentando não haver conseguido 'especificações
objetivas' por parte de pessoas vítimas de prisão irregular e de
arbitrariedades policiais. (…) Embora cientes das muitas denúncias
concretas já havidas – inúmeras delas inclusive divulgadas mais
recentemente por jornais brasileiros – vimo-nos na obrigação, como
vítimas, sobreviventes e testemunhas de gravíssimas violações aos
direitos humanos no Brasil, de encaminhar a Vossa Senhoria um relato
objetivo e pormenorizado de tudo o que nos tem sido infligido, nos
últimos seis anos, bem como daquilo que presenciamos ou acompanhamos
pessoalmente dentro da história recente do país”, diz o trecho inicial
da carta.
De acordo com Morano Filho, quando o documento foi tornado público,
ainda em 1975, nenhuma ação legal ou ação judicial o contestou. Nenhuma
contestação ao documento ocorreu até hoje, ressaltou.
Um dos ex-presos políticos que também assinou e ajudou a elaborar a
carta foi o ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República e atual membro da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos Paulo Vannuchi. Segundo ele, este documento é uma “prova cabal”
da existência de tortura e de violações no período. “Esta é mais uma
evidência, muito importante para o relatório final, para que não pairem
dúvidas de que houve excessos e de que houve dúzias de torturadores
sádicos e de que o regime criou uma estrutura (de violações) e a
apoiou”, afirmou. “Este é um documento curto, fácil de ler e que precisa
ser multiplicado para que todos o conheçam”, acrescentou.
Para Vannuchi, os relatórios das comissões da verdade de todo o país
deverão abordar, entre outras questões, a responsabilização do Estado
pelas violações ocorridas no período. “Os pouquíssimos participantes da
ditadura militar que admitem que ocorreram torturas - e o Ustra nega
taxativamente – o admitem como exceção. A exceção terá que ser abordada
no relatório das comissões, sobretudo da nacional, para dizer que não
foi o excesso de uma meia dúzia. Essa meia dúzia ou 233 nomes ou 400
precisam ser identificados. Os altos escalões sabiam o que se passava”,
disse Vannuchi.
Sem comentários:
Enviar um comentário