Fonte: Carta Potiguar
Após
a publicação do decreto presidencial que regulamenta os conselhos
populares em maio deste ano, assistimos a uma disputa discursiva nas
esferas midiática e política que se alimenta muito mais pelos jogos de
desinformação do que propriamente pelo debate público reflexivo em torno
dos critérios institucionais de participação democrática.
Nesse debate,
qualquer referência ao principio de correspondência com algo que possa
seja chamado de “real” ou “factual” é antecipadamente descartado como
critério de verdade. Aqui, o que vale é quem faz circular a ignorância
informacional de modo mais extenso e intenso.
A polêmica que gira em torno das instâncias de participação social
parece desprezar que os conselhos deliberativos funcionam como espaço de
diálogo e debate entre os agentes estatais e a sociedade civil em torno
do bem comum:
Art. 1º Fica
instituída a Política Nacional de Participação Social – PNPS, com o
objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias
democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração
pública federal e a sociedade civil.
E que nesse diálogo, a sociedade civil se engaja organizada ou não em
suas diferentes formas, conforme explicitado de modo claro no paragrafo
I do Art. 2° do Decreto N° 8.243:
“I – sociedade civil – o cidadão, os coletivos, os movimentos
sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e
suas organizações;”
Desse modo, qualquer cidadão, independente de vinculação ou não com
algum movimento social, poderá fazer parte do conselho de participação
social. O que o decreto realmente faz é regulamentar os conselhos
deliberativos que já existem no país.
Na
verdade, a celeuma gira em torno do uso do decreto presidencial, uma
ferramenta jurídica prevista constitucionalmente e que é um recurso
legal que deve ser considerado como legitimo em situações que visam a
ampliação da participação democrática e não o seu contrário, tal como
foi bastante utilizado durante o período militar-ditatorial do Brasil. O
uso do decreto presidencial naquele período mencionado visava ao
contrário, suspender ou bloquear as aspirações democráticas da sociedade
civil organizada. Soma-se a isso a resistência corporativista e
ideológica de estratos partidários do Congresso Nacional, além de
desconhecimento mesmo sobre a natureza prática dos conselhos
deliberativos populares e sobre os efeitos práticos da regulamentação
jurídica.
Convém reforçar mais uma vez o registro de que tais conselhos
deliberativos, de concreto, já existem e atuam em diferentes esferas
(conselhos de saúde, conselhos de educação) e escalas (municipal,
estadual e federal) do Estado.
Destaco mais uma vez, não há problema algum em ampliar os canais
institucionais de atuação direta da sociedade civil na elaboração e
discussão de políticas públicas. Ao contrário, essa ampliação é benéfica
para a democracia e também pode tornar mais eficiente a execução de
políticas governamentais, uma vez que o Estado – no diálogo com
representantes da sociedade civil – passa a ter acesso a um maior leque
de informações sobre os tipos de impactos sociais que suas ações podem
produzir, o que significa, em outras palavras, maior capacidade
institucional de previsibilidade da ação estatal.
O surpreendente é que a instauração de conselhos deliberativos visam
responder institucionalmente a crescentes demandas da sociedade civil
por maior transparência, maior controle popular e maior participação
pública nas instituições governamentais. E que essa abertura
institucional dos processos decisórios para a participação mais ativa da
sociedade civil é uma medida muito mais razoável na busca de soluções
dos problemas do sistema político-governamental (corrupção,
incompetência gerencial, etc.) do que acreditar que a simples mudança
de governante no processo eleitoral vai ser suficiente para resolver
aqueles problemas. Seria ingenuidade também, por parte dos partidos,
governantes e legisladores, acreditar que podem vencer as crescentes
demandas de justiça apenas por efeito de tempo e cansaço da sociedade
civil.
Engano, pois a atual explosão de manifestações e protestos coletivos
no Brasil é um fenômeno incontornável se nada mudar no modelo de relação
entre o sistema político-estatal e a sociedade civil. Principalmente
numa conjuntura caracterizada pelo surgimento crescente e diversificado
de novos movimentos sociais que articulam, sua vez, novas agendas de
demandas de justiça no Brasil. Alias, o que se observa atualmente é uma
instabilidade da conservação de governos, produzida principalmente por
crescente insatisfação popular. Porém, talvez governos e políticos
estejam considerando seriamente converter em rotina cotidiana a prática
de prisão preventiva, embasada judicialmente na “previsão” de
manifestação e o protesto “futuro” de grupos coletivos, a exemplo do que
se passou no Rio de Janeiro nesse mês de julho.
Em termos políticos-ideológicos, também é preciso ressaltar que a
regulamentação dos conselhos de participação popular está muito mais
próxima da materialização institucional do “paradigma procedimental”,
modelo dialógico da relação entre Estado e sociedade civil idealizado
por um intelectual liberal como o sociólogo e filosofo alemão Jürgen
Habermas do que a investida em programas “socialistas-bolivarianos”.
Logo Habermas que não cultiva nenhuma esperança ou expectativa que a
emancipação humana chegue por via de alguma revolução bolchevique. No
entanto, o mesmo Habermas também não acredita que os dois paradigmas
dominantes (neoliberal e o paradigma do Estado de Bem-Estar) sejam
capazes de responder satisfatoriamente as crescentes e diversificadas
demandas de justiça que brotam na sociedade civil. Daí sua aposta
política e ética no que definiu como “paradigma procedimental”, um
paradigma jurídico que investe no fortalecimento do procedimento
democrático.
No plano mais teórico-científico, existe farta literatura
especializada na Ciência Política e na Sociologia que tematiza de
maneira séria sobre as formas institucionais de participação e
deliberação democrática, a exemplo das Teorias da Mobilização de
Recursos, Teorias da Mobilização Política e da Teoria do Agir
Comunicativo (esta última, articulada por Habermas). No Brasil, uma
importante referência das Ciências Sociais que trata do tema da
institucionalização dos conselhos deliberativos é a socióloga Maria
Glória Gohn e merece ser lida por quem deseja conhecer uma reflexão mais
séria e consistente.
É lamentável que processos de institucionalização da prática
democrática sejam alvos de interpretações tão estreitas e distorcidas
sobre formas de representação da sociedade civil. Apelar para chavões
toscos (“medida bolivariana”, “imposição autoritária do socialismo”)
constitui muito mais o traço de desinformação e cultivo da ignorância
que circula na esfera pública midiática do que a preocupação mais
substantiva com a democracia no Brasil.
Sem comentários:
Enviar um comentário