domingo, 13 de julho de 2014

DICA CULTURAL >> Livros melhores que filmes

Foto: Em Christian Petermann seleciona dez livros que são ainda melhores que suas já ótimas adaptações para o cinema.

Em "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector, Christian Petermann diz que "a leitura para cinema respeita a rica intimidade humana criada por Lispector".

Com a recente morte do Nobel de Literatura Gabriel García Márquez, muito se pensou sobre sua obra e vida. Ambas tiveram um forte pé fincado também no cinema, com roteiros por ele escritos e colaborações eventuais desde meados dos anos 1960. Pensando nisto, não são muitas as boas adaptações para cinema feitas a partir de sua obra. Recorrendo ao acervo e memória acumulados em 28 anos de crítica profissional de cinema, escolhi dez longas-metragens de qualidade, mas que são adaptações de obras literárias ainda melhores - ou seja, dicas obrigatórias de cinema e leitura. A começar por um García Márquez...

Para ler, clique nos itens abaixo:
1. A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada

Autor: Gabriel García Márquez
Adaptação: Erêndira (1983), de Ruy Guerra

O próprio escritor colombiano García Márquez escreveu o roteiro do filme a partir de um de seus principais best-sellers. O diretor moçambicano radicado no Brasil Ruy Guerra iniciaria então uma forte amizade com o autor, que renderia ainda duas outras parcerias cinematográficas, A Bela Palomera (88) e O Veneno da Madrugada (09). Erêndira ainda é a melhor, uma tradução inspirada do realismo fantástico tipicamente latino que permeia a obra. Sonhos e superstições costuram a história da adolescente-título (numa forte licença poética interpretada pela então esposa de Guerra, Claudia Ohana), que vive numa tenda isolada no deserto apenas com sua avó, de forte temperamento (antológica atuação da grega Irene Papas). Quando por negligência a jovem provoca um incêndio na tenda, ela é obrigada a se prostituir até quitar o prejuízo da avó.
2. A Hora da Estrela

Autor: Clarice Lispector
Adaptação: A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral

Clarice Lispector, uma das grandes escritoras da literatura brasileira, tem em A Hora da Estrela talvez seu livro mais famoso. Este é, nas palavras da autora, "sobre uma inocência pisada, de uma miséria anônima": o comovente relato de vida de Macabéa, uma datilógrafa alagoana que tenta a sorte no Rio de Janeiro. Na versão para cinema escrita pela diretora Suzana Amaral, o cenário se desloca para São Paulo, e é talvez por isso mais impiedosa com a jornada trágica da protagonista (impecavelmente interpretada por Marcelia Cartaxo). A leitura para cinema respeita a rica intimidade humana criada por Lispector.
3. Lavoura Arcaica

Autor: Raduan Nassar
Adaptação: Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho

Narrado em primeira pessoa, este romance publicado em 1975 foi por anos considerado impossível de ser transposto para as telas, por causa de seus tempos narrativos aleatórios, raros diálogos e descrições minuciosas de espaços e estados de espírito. Em seu primeiro trabalho em cinema, o diretor Luiz Fernando Carvalho trabalhou sem um roteiro prévio e usou o livro como fonte rigorosa para as falas do filme. André (Selton Mello) rebela-se contra as imposições autoritárias do pai e foge para a cidade. Tempos depois, o primogênito Pedro (Leonardo Medeiros) o localiza numa pensão suja, e André confidencia a natureza de seu conflito com a figura paterna. Tanto livro quanto longa-metragem não são de fácil absorção, mas ambos proporcionam ao leitor/espectador instigante imersão em poesia e sugestão.

4. Cidade de Deus

Autor: Paulo Lins
Adaptação: Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Katia Lund

Livro e filme já são ícones absolutos do pop brasileiro contemporâneo. Com uma narrativa que é ao mesmo tempo poética e ágil, à semelhança do ritmo audiovisual, a obra de Paulo Lins radiografa de forma precisa mudanças na realidade brasileira a partir das transformações vividas no conjunto habitacional Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, entre os anos 1960 a 90. O dinamismo do texto foi mais de meio caminho andado para o roteiro de Braulio Mantovani virar referência em termos de construção e linguagem. A atualidade do entrecho literário mantém sua força intacta num filme cultuado pela sucessão de cenas antológicas.
5. A Estrada

Autor: Cormac McCarthy
Adaptação: A Estrada (2009), de John Hillcoat

Este romance do norte-americano Cormac McCarthy, dedicado ao próprio filho, venceu o prêmio Pulitzer 2006 de melhor ficção e é uma saga pós-apocalíptica: pelo ritmo impecável e escolha perspicaz de palavras, o leitor acompanha de perto a jornada empreendida por pai e filho, durante meses, por uma paisagem destruída por um cataclismo não especificado, que eliminou a civilização e boa parte da vida no planeta. Na versão para cinema, o diretor australiano John Hillcoat explora os elementos minimalistas da premissa e cria um drama futurista de foro íntimo e aberto a divagações. Os atores Viggo Mortensen e Kodi Smit-McPhee conduzem a trama com entrega física.
6. Morte em Veneza

Autor: Thomas Mann
Adaptação: Morte em Veneza (1971), de Luchino Visconti

A novela de Thomas Mann, publicada pela primeira vez em 1912, tem enredo mínimo - homem de meia-idade viaja para Veneza por ordens médicas e lá se apaixona por Tadzio, um belo e jovem polaco; morre sem nunca sequer falar com ele - e uma escrita elaborada, aberta a várias leituras a cada novo capítulo. Este marco da literatura descreve o desejo e a tentativa de captura da beleza plena, seja por arte e/ou contato. Já o clássico dirigido por Luchino Visconti mergulhou com impressionante intimidade e identidade na obra, em parte colocando o protagonista como uma espécie de extensão do próprio cineasta. Gustav Aschenbach foi magnificamente interpretado por Dirk Bogarde, e Visconti acertou ao recorrer a Gustav Mahler como comentário musical para sua obra.
7. Hamlet

Autor: William Shakespeare
Adaptação: Hamlet (1996), de Kenneth Branagh

A tragédia teatral escrita pelo bardo inglês é um dos textos mais encenados e adaptados nos palcos e também no cinema. Escrita entre 1599 e 1601e versando por já conhecidas intrigas palacianas no reino da Dinamarca, a peça de Shakespeare mantém-se atual e universal por tratar de temas como corrupção, moralidade e traição. O inglês Kenneth Branagh, seguindo os passos de seu ídolo sir Laurence Olivier, levou às telas, depois de "Henrique V", esta que se configura talvez como a melhor das leituras cinematográficas de Hamlet. Com roteiro assinado por ele, Branagh também interpreta o próprio príncipe da Dinamarca, que quer vingar a morte do pai e vê sua mãe casada com o assassino, seu tio Claudio. O filme de Branagh é fiel ao texto e à estrutura da peça sem deixar de ser um espetáculo cinematográfico sedutor, de luxuosa direção de arte e com elenco estelar - entre outros, Julie Christie, Gérard Depardieu e Judi Dench.
8. O Processo

Autor: Franz Kakfa
Adaptação: O Processo (1962), de Orson Welles

A perenidade do clássico romance do checo Franz Kafka refletiu-se, por exemplo, ao este ser adaptado em quadrinhos, em 1999, pelo mestre Guido Crepax. Lançado em 1925, no entre-guerras, o livro mantém intacta a contundência factual e simbólica do retratado em suas páginas: certa manhã, sem aparente razão, Josef K. é preso e submetido a um longo processo, acusado de um crime não revelado. A riqueza de possibilidades deste entrecho cativou Orson Welles, que adaptou a obra, com diálogos de Pierre Cholot, e escalou Anthony Perkins, recém-saído de "Psicose", para personificar Josef K. O resultado é um fascinante pesadelo em preto-e-branco, com admirável elenco feminino (Jeanne Moreau, Romy Schneider, Elsa Martinelli).
9. Solaris

Autor: Stanislaw Lem
Adaptação: Solaris (1972), de Andrei Tarkovski

Escrito em 1961 pelo polonês Stanislaw Lem, este romance de ficção científica tem camadas e nuances tanto existenciais quanto místicas que ampliam a percepção de seu enredo sem muitos fatos: um psicólogo é enviado a uma estação espacial para descobrir a causa da insanidade coletiva da tripulação; a estação orbita um planeta que é constituído de um imenso oceano inteligente - a cada tentativa de contato feita por um explorador, esta inteligência "não humana" cria uma réplica de uma pessoa do passado deste. O mestre russo Andrei Tarkovski encontrou nesta trama material perfeito para suas próprias divagações cinematográficas: fiel à sua câmera contemplativa e às imagens oníricas e/ou fantasmagóricas que concebia, Tarkovski elaborou uma preciosidade audiovisual que requer imersão por parte do espectador.
10. Orgulho e Preconceito

Autor: Jane Austen
Adaptação: Orgulho e Preconceito (2005), de Joe Wright

Terminado em 1797, às vésperas da inglesa Jane Austen completar 21 anos, mas publicado apenas em 1813, este romance tem importância histórica pelo teor de choque de classes e por apresentar uma protagonista precursora da autoestima independente das mulheres. Com elegância narrativa, Austen apresenta a complexa paixão entre Elizabeth Bennet, de origem humilde, mas de mente brilhante e temperamento forte, e o aristocrata Mr. Darcy, que desafia sua educação para se entregar a esta relação. O diretor também inglês Joe Wright contou com ótimos atores - Keira Knightley e Matthew Macfadyen - para traduzir as faíscas deste casal, numa adaptação que mantém a emoção e o fino humor da escrita. Não faz mal também ter atores coadjuvantes do porte de Judi Dench, Donald Sutherland e Brenda Blethyn.

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