Por Caio Gabriel, Mestre em Estudos Urbanos – UFRN, Professor do curso de Gestão em Politicas Públicas da UERN, Estudante de Direito - UERN, no site Carta Potiguar.
Para quem não está familiarizado com o nome acima, Fabiane Maria de
Jesus, 33 anos, era moradora da comunidade de Morrinhos, região
“periférica” do Guarujá, litoral paulistano. Fabiana tornou-se tema dos
principais jornais do país por ter se tornando (mais) uma vitima do
justiçamento popular, do qual fora trucidada barbaramente pelos seus
conterrâneos de bairro após a disseminação de um boato, originado em uma
página do facebook (“Guarujá Alerta”), a respeito do rapto de crianças
para a realização de rituais de magia negra. O perfil da rede social,
pelo o que dar a entender, tem como objetivo, aparentemente, de manter a
vizinhança em constante estado de alerta diante da “ameaça” de uma
eventual presença de indivíduos que não fazem parte da dinâmica social
da região, bem como despertar aos moradores as precauções diante de
comportamentos atípicos. Aliás, o que era para ser um mecanismo
alternativo de proteção dos moradores, acabou se tornando em mais uma
ferramenta de substanciação ao medo coletivo, e Fabiane foi vitima
também dessa distorção.
Nem
cheguei a abrir os vídeos do assassinato de Fabiana, mas pelos relatos
presentes na imprensa, dar-se para ter uma breve noção da tamanha
animalidade e ferocidade do crime, que não obstante se assemelham em
parte a uma cena do filme A Ilha do Doutor Moreau (John Frankenheimer –
1996), quando os “seres perfeitos” (meio homens meio macacos) atacam
enlouquecidamente, com paus, pedras e as próprias mãos, o seu criador,
que deitado em uma rede, e sem esboçar quaisquer reações, tem suas
vísceras expostas, enquanto seus algozes regozijam alto a sua vitória.
Seria coincidência? No caso de Fabiane, quem seria macaco e quem seria
homem? Como diria um amigo meu: “respeite os macacos, eles não são
dignos dessa comparação”. Não recriminei a opinião do colega, pois suas
palavras apenas demonstram o tamanho da descrença em um projeto
civilizatório humanizado.
A pergunta inicial desse texto parece ter uma resposta instantânea:
de fato, quem matou Fabiane? Automaticamente, responderíamos: “os
moradores que a lincharam” em praça pública, a luz do dia, em um ritual
festivo semelhante as execuções de criminosos na Idade Média. Mas não! A
resposta é bem mais complexa, onde o grupo insano que aplicou a pena
mortal à dona de casa apenas se constituiu como o meio sujo de completar
aquela sanção imposta bem antes a sua morte, pena esta que pode ser
atribuída a uma variedade de instituições junto a opinião pública
brasileira, que alimentada por uma mídia especulativa, segregacionista,
reacionária, preconceituosa e conservadora, forma a opinião de milhões
de cidadãos desse país. Estaria eu responsabilizando os nossos veículos
de comunicação pela popularização da vingança privada? Não
absolutamente, mas estou lhe atribuindo uma fatia desse bolo azedo que é
a nossa tragédia social de todos os dias. Censurar esses veículos seria
a chave da questão? Jamais. Mas torná-los conscientes de seu papel
pedagógico já seria um bom começo.
Assim, respeitando o perigo das generalizações, pode-se perceber que
parte desse gênero jornalístico é constituída, pensada e formatada por
grupos e indivíduos que ocupam posições superiores em nossa pirâmide
social, e que consequentemente selecionam sistematicamente o que deve,
ou não, ser empurrado goela abaixo as nossas classes menos abastadas.
Será que estou sendo dramático? Pois então se pergunte: Porque, em 2012,
Thor Batista não apanhou de uma multidão descontrolada após atropelar e
matar o ajudante de caminhão Wanderson Pereira? Porque ninguém quis
trucidar os 5 garotos da Zona Sul de Brasília que em 1997 incendiaram o
índio Galdino por “pura diversão”? Alguém aí se armou de pau e pedras
para vingar Dona Sirley, empregada doméstica que foi espancada em 2007
na Barra da Tijuca após ser “confundida com uma prostituta”? Como não
empalaram em via pública o filho do todo poderoso Sérgio Sirotsky, dono
do grupo RBS de comunicações, filiada a Rede Globo em Santa Catarina,
após acusações de estupro contra uma garota de 13 anos de idade? Deu
para perceber quem são as vitimas e quem são os agressores? Pois é: os
ódios, os preconceitos e as opiniões jocosas das nossas classes médias
altas se tornam regulamentadas como comportamento padrão por meio de
ferramentas pedagógicas sutis, que são ardilosamente maquinadas com um
objetivo perverso e não visto a olho.nu: fomentar a relativização do crime diante das variáveis classe-renda-cor.
Algum conservador que leu esse texto até agora deve está pensando:
“mais um intelectualóide que discretamente chama as massas de burras e
manobráveis.” Não, o pobre não é burro, mas venhamos e convenhamos que
essa espécie de mídia é consumida majoritariamente pelos moradores de
nossas periferias, pelo nosso operariado a bem dizer, e é justamente daí
que surge a carência intencional de um teor critico e reflexivo a cerca
de nossa problemática social por parte desses veículos, o que faz
aflorar uma espécie de Síndrome de Estocolmo entre público alvo, isso
mesmo, aquele estado psicológico em que o seqüestrado passa a se
identificar emocionalmente com o seqüestrador. Dessa maneira o pobre não
mais se identifica enquanto pobre, o gay passa ter ódio da “bicha
espalhafatosa” e o “trabalhador pai de família” é habilitado a espancar
até a morte o “cabra de pêia”. Assim, a categoria sociológica do
Trabalhador e do Bandido que Alba Zaluar já fazia menção é afastada por
meio de um tom dramático e raivoso.
Desse modo, como tantos outros que foram amarrados, torturados e
assassinados em espaços públicos por grupos de justiceiros, Fabiane foi
vitima de algo bem pior que socos, tapas, chutes, paus e pedras: quem
sacrificou a moça foi a típica falácia do Estado falido, aquela mesma
pronunciada por Raquel Sheherazade em tom inflamado e compartilhada
pelos seus colegas de oficio, que misturam os distintos conceitos de
justiça e punição quando pressupõem que os governos não conseguem mais
reter a onda de violência, de que temos um judiciário que não promove a
justiça entre os seus cidadãos, de Direitos Humanos que são
exclusivamente garantias fundamentais dos “manos”, que a redução da
maioridade penal é a válvula de escape da tragédia social e que qualquer
forma de violência policial é meramente reativa e justificável.
Mas na verdade, em uma corrente contrária a essa onda, corre um
Brasil real dos dados e das estatísticas, que expõe a verdadeira ferida a
ser pisada, que nos mostram um país com a 4ª maior massa carcerária do
mundo, claro formada em boa parte por homens negros e pobres; um Brasil
escancarado que expõe nossos jovens como as vitimas preferenciais dessa
violência, onde nos colocamos no 4º lugar do ranking global de
homicídios entre a população de 15 a 24 anos, ficando apenas atrás de El
Salvador, Venezuela e Guatemala; Um Brasil factual que possui uma das
policias mais violentas e letais do mundo com o escandaloso número de
1.890 pessoas mortas “em conflito”, uma média de 5 por dia, só no ano de
2012, o que inclusive ocasionou uma recomendação da ONU pela sua
extinção; Um Brasil que pena para efetivar os Direitos Humanos das
minorias, que se estendem as mulheres, aos homossexuais, aos negros e
aos portadores de deficiência.
E aí, quem matou Fabiane?
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