sábado, 10 de maio de 2014

UMA REFLEXÃO >> QUEM MATOU FABIANE?

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Por Caio Gabriel, Mestre em Estudos Urbanos – UFRN, Professor do curso de Gestão em Politicas Públicas da UERN, Estudante de Direito - UERN, no site Carta Potiguar.

Para quem não está familiarizado com o nome acima, Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, era moradora da comunidade de Morrinhos, região “periférica” do Guarujá, litoral paulistano. Fabiana tornou-se tema dos principais jornais do país por ter se tornando (mais) uma vitima do justiçamento popular, do qual fora trucidada barbaramente pelos seus conterrâneos de bairro após a disseminação de um boato, originado em uma página do facebook (“Guarujá Alerta”), a respeito do rapto de crianças para a realização de rituais de magia negra. O perfil da rede social, pelo o que dar a entender, tem como objetivo, aparentemente, de manter a vizinhança em constante estado de alerta diante da “ameaça” de uma eventual presença de indivíduos que não fazem parte da dinâmica social da região, bem como despertar aos moradores as precauções diante de comportamentos atípicos. Aliás, o que era para ser um mecanismo alternativo de proteção dos moradores, acabou se tornando em mais uma ferramenta de substanciação ao medo coletivo, e Fabiane foi vitima também dessa distorção.

Nem cheguei a abrir os vídeos do assassinato de Fabiana, mas pelos relatos presentes na imprensa, dar-se para ter uma breve noção da tamanha animalidade e ferocidade do crime, que não obstante se assemelham em parte a uma cena do filme A Ilha do Doutor Moreau (John Frankenheimer – 1996), quando os “seres perfeitos” (meio homens meio macacos) atacam enlouquecidamente, com paus, pedras e as próprias mãos, o seu criador, que deitado em uma rede, e sem esboçar quaisquer reações, tem suas vísceras expostas, enquanto seus algozes regozijam alto a sua vitória. Seria coincidência? No caso de Fabiane, quem seria macaco e quem seria homem? Como diria um amigo meu: “respeite os macacos, eles não são dignos dessa comparação”. Não recriminei a opinião do colega, pois suas palavras apenas demonstram o tamanho da descrença em um projeto civilizatório humanizado.

A pergunta inicial desse texto parece ter uma resposta instantânea: de fato, quem matou Fabiane? Automaticamente, responderíamos: “os moradores que a lincharam” em praça pública, a luz do dia, em um ritual festivo semelhante as execuções de criminosos na Idade Média. Mas não! A resposta é bem mais complexa, onde o grupo insano que aplicou a pena mortal à dona de casa apenas se constituiu como o meio sujo de completar aquela sanção imposta bem antes a sua morte, pena esta que pode ser atribuída a uma variedade de instituições junto a opinião pública brasileira, que alimentada por uma mídia especulativa, segregacionista, reacionária, preconceituosa e conservadora, forma a opinião de milhões de cidadãos desse país. Estaria eu responsabilizando os nossos veículos de comunicação pela popularização da vingança privada? Não absolutamente, mas estou lhe atribuindo uma fatia desse bolo azedo que é a nossa tragédia social de todos os dias. Censurar esses veículos seria a chave da questão? Jamais. Mas torná-los conscientes de seu papel pedagógico já seria um bom começo.

Porque a nossa mídia de massas tem a sua parcela de culpa nessa fatalidade homérica que é a popularização dos “tribunais populares”? A expansão e consolidação, nos últimos anos, de jornais do gênero policial podem explicar em parte a onda de linchamentos populares enquanto mecanismo alternativo de punição a suspeitos, culpados e inocentes.

Assim, respeitando o perigo das generalizações, pode-se perceber que parte desse gênero jornalístico é constituída, pensada e formatada por grupos e indivíduos que ocupam posições superiores em nossa pirâmide social, e que consequentemente selecionam sistematicamente o que deve, ou não, ser empurrado goela abaixo as nossas classes menos abastadas. Será que estou sendo dramático? Pois então se pergunte: Porque, em 2012, Thor Batista não apanhou de uma multidão descontrolada após atropelar e matar o ajudante de caminhão Wanderson Pereira? Porque ninguém quis trucidar os 5 garotos da Zona Sul de Brasília que em 1997 incendiaram o índio Galdino por “pura diversão”? Alguém aí se armou de pau e pedras para vingar Dona Sirley, empregada doméstica que foi espancada em 2007 na Barra da Tijuca após ser “confundida com uma prostituta”? Como não empalaram em via pública o filho do todo poderoso Sérgio Sirotsky, dono do grupo RBS de comunicações, filiada a Rede Globo em Santa Catarina, após acusações de estupro contra uma garota de 13 anos de idade? Deu para perceber quem são as vitimas e quem são os agressores? Pois é: os ódios, os preconceitos e as opiniões jocosas das nossas classes médias altas se tornam regulamentadas como comportamento padrão por meio de ferramentas pedagógicas sutis, que são ardilosamente maquinadas com um objetivo perverso e não visto a olho.nu: fomentar a relativização do crime diante das variáveis classe-renda-cor.

Algum conservador que leu esse texto até agora deve está pensando: “mais um intelectualóide que discretamente chama as massas de burras e manobráveis.” Não, o pobre não é burro, mas venhamos e convenhamos que essa espécie de mídia é consumida majoritariamente pelos moradores de nossas periferias, pelo nosso operariado a bem dizer, e é justamente daí que surge a carência intencional de um teor critico e reflexivo a cerca de nossa problemática social por parte desses veículos, o que faz aflorar uma espécie de Síndrome de Estocolmo entre  público alvo, isso mesmo, aquele estado psicológico em que o seqüestrado passa a se identificar emocionalmente com o seqüestrador. Dessa maneira o pobre não mais se identifica enquanto pobre, o gay passa ter ódio da “bicha espalhafatosa” e o “trabalhador pai de família” é habilitado a espancar até a morte o “cabra de pêia”. Assim, a categoria sociológica do Trabalhador e do Bandido que Alba Zaluar já fazia menção é afastada por meio de um tom dramático e raivoso.

Desse modo, como tantos outros que foram amarrados, torturados e assassinados em espaços públicos por grupos de justiceiros, Fabiane foi vitima de algo bem pior que socos, tapas, chutes, paus e pedras: quem sacrificou a moça foi a típica falácia do Estado falido, aquela mesma pronunciada por Raquel Sheherazade em tom inflamado e compartilhada pelos seus colegas de oficio, que misturam os distintos conceitos de justiça e punição quando pressupõem que os governos não conseguem mais reter a onda de violência, de que temos um judiciário que não promove a justiça entre os seus cidadãos, de Direitos Humanos que são exclusivamente garantias fundamentais dos “manos”, que a redução da maioridade penal é a válvula de escape da tragédia social e que qualquer forma de violência policial é meramente reativa e justificável.

Mas na verdade, em uma corrente contrária a essa onda, corre um Brasil real dos dados e das estatísticas, que expõe a verdadeira ferida a ser pisada, que nos mostram um país com a 4ª maior massa carcerária do mundo, claro formada em boa parte por homens negros e pobres; um Brasil escancarado que expõe nossos jovens como as vitimas preferenciais dessa violência, onde nos colocamos no 4º lugar do ranking global de homicídios entre a população de 15 a 24 anos, ficando apenas atrás de El Salvador, Venezuela e Guatemala; Um Brasil factual que possui uma das policias mais violentas e letais do mundo com o escandaloso número de 1.890 pessoas mortas “em conflito”, uma média de 5 por dia, só no ano de 2012, o que inclusive ocasionou uma recomendação da ONU pela sua extinção; Um Brasil que pena para efetivar os Direitos Humanos das minorias, que se estendem as mulheres, aos homossexuais, aos negros e aos portadores de deficiência.
E aí, quem matou Fabiane?

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